Cultura
Quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

‘Gótico Mexicano’ atualiza o gênero de Frankenstein com incesto, xenofobia e canibais

CAIO DELCOLLI- “Ele quer me envenenar. Esta casa é podre, decadente, repleta de males e sentimentos cruéis”, escreve Catalina, com caligrafia trêmula, para a prima, Noemí Taboada. “Eles são cruéis, perversos e não me deixarão sair.”
Catalina diz que ouve sussurros de fantasmas à noite e que seu marido, o britânico Virgil Doyle, a planeja matar. Ela suplica a Noemí que a resgate de High Place, o casarão vitoriano em que vive com ele e a família dele; a construção tem um cemitério nos fundos e está escondida por uma neblina em meio às montanhas.
A situação é estranha, já que Catalina nem sequer tem o hábito de escrever cartas e não conversava com a família há muito tempo. Noemí decide, então, ir em busca da prima –chegando a High Place, ela encontra uma família com um histórico de incestos, eugenia e canibalismo, além de um estranho tipo de cogumelo.
Noemí Taboada é a protagonista de “Gótico Mexicano”, romance de terror de Silvia Moreno-Garcia ambientado no México dos anos 1950, época em que mulheres não tinham direito ao voto. O livro foi publicado há pouco no Brasil pela DarkSide Books depois figurar na lista dos mais vendidos do New York Times por nove semanas no ano passado. Neste ano, foi indicado aos prêmios Nebula e Bram Stoker, os principais de fantasia e terror.
“A ficção gótica frequentemente tem a figura do outro como o elemento perigoso, representando diferenças raciais e o rompimento com os valores protestantes da classe alta e branca”, conta Moreno-Garcia, mexicana de 39 anos radicada em Vancouver. “Meu livro inverte isso, porque a força invasiva é a dos britânicos brancos de classe alta, e não a dos mexicanos.”
Esse é um dos motivos por que o romance da autora –o sexto de sua carreira– empolgou crítica e público no ano passado. A tradição da literatura gótica é encabeçada por nomes surgidos no século 19, como Emily Brontë, autora de “O Morro dos Ventos Uivantes”, e Charlotte Brontë, de “Jane Eyre”, na vertente romântica, e Bram Stoker, de “Drácula”, e Mary Shelley, de “Frankenstein”, na vertente do terror.
Nos anos 1960, Jean Rhys despontou com “Vasto Mar de Sargaços”, considerado uma resposta feminista e pós-colonial a “Jane Eyre”. “Gótico Mexicano” dialoga com essas linhagens e amplia o gênero ao o cruzar com a cultura mexicana. “Não cabe a mim dizer qual é a minha contribuição com o gênero. É melhor que isso fique a cargo de estudiosos e leitores”, diz a autora.
Moreno-Garcia diz ter brincado com as expectativas que temos a respeito de seu país de origem ao tratar da influência colonial no México –o enredo se inspira em Real del Monte, uma cidade nas montanhas onde, no século 19, mineiros britânicos foram explorar a prata local depois de os espanhóis deixarem o país latino-americano.
Pouca gente sabe desse episódio da história mexicana, diz. “O livro também subverte o que as pessoas entendem como ‘mexicano’. Eu me lembro de já ter conversado com alguém que me disse acreditar que o México é todo só deserto e sem chuva, mas obviamente, nós temos regiões e climas diferentes, além de uma história complexa com o colonialismo.”
Em “Gótico Mexicano”, o embate entre o moderno e o antigo é representado pela cativante protagonista Noemí, uma jovem socialite e estudante de antropologia que usa a própria inteligência para lidar com os problemas que aparecem no decorrer da história. A personagem faz contraponto a um senso comum que a autora critica –o de que histórias mexicanas se restringem ao realismo fantástico ou ao sofrimento de imigrantes.
Há um quê de autobiográfico nisso. A própria Moreno-Garcia, que também escreve e edita ficção científica e fantasia, já se viu em situações em que teve seu trabalho subjugado por causa de estereótipos. “Passei por percalços bizarros. Já ouvi que as editoras não teriam interesse nos meus livros porque eles se ambientam no México e não nos Estados Unidos. Já recebi uma mensagem de um leitor irritado porque o Dia dos Mortos não é parte de ‘Gótico Mexicano'”, conta.
“É como se todo mundo ganhasse uma caixa de giz de cera para colorir uma pintura, você fica com o vermelho e tem de se contentar apenas com esse.”
A julgar por “Gótico Mexicano”, Moreno-Garcia se apropriou da caixa de giz e usa as cores que bem quiser. O nome da protagonista, por exemplo, é uma homenagem a Carlos Enrique Taboada, precursor do gótico no cinema de terror mexicano. Um dos elementos da narrativa é a eugenia, tema explorado pela própria autora em sua pesquisa de mestrado sobre a misoginia e racismo na obra de H. P. Lovecraft.
O atual apetite por representatividade de personagens e culturas externos ao establishment branco e masculino do pop é uma inegável força cultural. E mercadológica também -a plataforma de streaming Hulu já encomendou uma adaptação do livro para a série.
A escritora será produtora executiva, mas se mostra pragmática. “Adaptações levam um bom tempo para acontecer e não há garantias de que qualquer coisa será concretizada”, diz. “Vejamos o que eles vão inventar.”

Fonte: FolhaPress