MATHEUS LOPES QUIRINO – A poesia de Charles Simic é marcada por ruídos. Daqueles incômodos inconscientes que perturbam a mente conforme a madrugada cai, o imaginário descortina uma legião de monstros e demônios que podem, a qualquer momento, assolar e matar o insone -não há cobertor que salve.
A partir desse desconforto, construído com figuras de linguagem desconcertantes, podemos classificar alguns dos poemas do escritor Charles Simic na antologia “O Meu Anjo da Guarda Tem Medo do Escuro”.
Simic nasceu atormentado, perseguido. Em 1938, com a Iugoslávia na linha bélica do Leste Europeu, o pequeno Charles não via luz no fim do túnel. Bombardeios nazistas, truculência policial, sua família foi ameaçada pela ascendência judaica. Seu pai foi pego pela Gestapo e levado aos tribunais. Ele se refugiou nos Estados Unidos, para onde Simic e a mãe foram também mais tarde, com uma rápida escala na França. Segundo Simic, Hitler e Stálin foram seus agentes de viagem.
Tendo vivido sob bombardeio constante, a ruidosa atmosfera da guerra deixa ecos para sempre na literatura do escritor. Ele lembra especialmente a infância e é ela o tema que marca sua poesia, mas uma infância em que os brinquedos não eram carrinhos ou bonecas, sim espetos de pau como rifles.
Sempre à espreita, o medo, a “ameaça iminente” que o persegue, como aponta o tradutor, é também um medo folclórico. Talvez esse seja o ponto de convergência mais forte entre Simic e os surrealistas –com destaque para as paisagens soturnas de Giorgio De Chirico.
Simic publicou aos 21 seus primeiros poemas na Chicago Review. Hoje, o escritor é contribuinte regular de publicações de prestígio nos Estados Unidos, como a revista The New Yorker e não só sobre literatura ele escreve.
Laureado com um Pulitzer em 2007, a voz de Simic é também a voz de um mordaz crítico da sociedade ocidental. Tema explorado na poesia de Simic, os sonhos (e pesadelos) guiam o leitor na antologia “O Meu Anjo da Guarda Tem Medo do Escuro”, recém-lançado pela editora Todavia. No livro, Simic trafega pelas artimanhas da memória, e nesse emaranhado de reminiscências se destaca o que há de mais ordinário, em matéria de matéria. Em “Fábrica” ele evoca uma comuna de roedores que ficam bípedes, ao redor de uma gaiola na penumbra. Nesse retrato escurecido, vemos esse ordinário sobressair. “Só uma cadeira de encosto se destacava como um trono.”
Eles cortejam a armadilha, os ratos, como se confrontassem a própria possibilidade de viver –e os homens da guerra, com os rifles, tal qual não estariam para essa construção?
Sem barroquismos e elucubrações, Simic é seco e misterioso. Ele constrói uma espécie de álbum de memórias obscurecido, são essas as reminiscências da juventude que o assombram por uma vida. Demônios não domados da violência que atingiu a Sérvia na infância ele não os expurga, mas os põe no centro de sua poesia. Tudo é turvo, seco, claustrofóbico, noir.
Dos poemas do livro, “Meu Pai Conferia Imortalidade aos Garçons” é chamariz para a coletânea. Nele, Simic contrapõe a imagem terrena do garçom, esse homem transitório que passa (ou passava, antes da pandemia) diariamente como mais um espectro em nossas vidas. O garçom, na poesia de Simic, incorpora o oposto disso, ganha uma aureola que reluz nas vestes limpas e alinhadas, típica destes trabalhadores.
“Com seus paletós brancos idênticos e sorrisos fixos”, ele descreve o garçom. Mas poderia ser o anjo da guarda. Simic, no mesmo poema, fala em palidez, em colarinhos em riste. No imaginário popular, o arquétipo do garçom, como do anjo da guarda, segue uma postura protocolar, alva, atenciosa, asséptica.
Na sequência, em “Os Demônios”, ele critica o pedantismo, retrata casais tediosos, recém-chegados num apartamento, em contraponto à figura da aranha que faz teia. Há o novo, o viço, a expectativa versus o velho, o degradado, a sujeira. Claro, a figura da aranha é algo simbólico, tanto para a mitologia dos sonhos, quanto para figurar como anfitriã de pombinhos em lua de mel. É sinistra. Para Simic, o diabo mora nos detalhes. E ele o procura constantemente.
“Fim de Setembro”, um dos poemas que abrem o livro, é também um dos mais complexos, no sentido de desvendar sua construção. Repleto de ar, o poema se mostra como um tufo de poeira do tempo jogado pelo vento, como uma bolorenta bola de sebo no velho oeste.
A melancolia atinge o cume nestes versos, tão bem representada em “o caminhão do correio desce a costa/ levando uma única carta”. É uma imagem que evoca profunda solidão e expectativa, para, na sequencia, dizer “na noite passada você julgou ter ouvido/ a televisão na casa da vizinha”. “Estava seguro que relatavam/ Algum novo horror e então/ Saiu descalço para averiguar/ Usando apenas um short/ Era só o mar soando exausto/ Após muitas vidas/ Fingindo apressar-se rumo a algum lugar/ Sem jamais chegar a algum lugar.”
A mesma solidão fica evidente em “Preocupados Anônimos”, poema já no final da seleta, que constrói uma imagem definitiva da angústia entonada por Simic em toda sua produção. “O modo como o casal de velhinhos enlaça as mãos -talvez recém-saídos de um elevador/ Onde ficam presos por horas,/ Gratos pelo alívio, antes que uma nova preocupação/ Se aproxime para enfurecer seu dia”, dizem os versos.
Parte da fortuna crítica considera o autor como cria influenciada pelo surrealismo ou simplesmente surrealista. Em seu posfácio, Ricardo Rizzo comenta o estilo único de Simic. O quão é difícil classificar um poeta tão singular. Nas décadas de 1950 e 1960, o surrealismo, com André Breton, com o dadaísmo, influenciou uma geração de jovens poetas, os beatniks.
Simic passa longe de qualquer enquadramento estético. Ainda está vivo e na ativa. Para vias de comparação, cá no hemisfério sul, o tenebroso verso de Charles Simic pode ser uma versão menos musical do “Poema das Sete Faces” de Drummond. “Quando nasci, um anjo torto/ Desses que vivem na sombra/ Disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.”
A poesia de Simic carrega um frisson, tanto pelo desconforto elegido em imagens desbotadas, quanto pelo espectro mítico que cerca suas figuras, ora diabólicas, ora acossadas, sempre infantes. Em sua escrita, a penumbra ganha do holofote, a figura feminina, tanto explorada pelo viés da sacralidade nas artes, é pagã. O caçador é a caça, e essa lógica se inverte num estalar de dedos.
O anjo da guarda não é um exemplo de valentia, é um anjo torto, escreve Simic. “Me manda ir na frente, diz que me alcança num instante.”
Fonte: FolhaPress