MARINA LOURENÇO – Ignoradas, deturpadas e menosprezadas. É assim que as histórias dos povos negros costumam ser contadas em registros biográficos, obras de arte e até mesmo nos livros de história do Brasil, apagadas num país que ironicamente tem o maior número de pessoas negras fora do continente africano.
Lançado agora pela Companhia das Letras, o livro “Enciclopédia Negra” reúne mais de 550 biografias de nomes que marcaram o país, incluindo os de revolucionários, intelectuais, artistas, atletas, líderes religiosos e outras personalidades negras esquecidas pela historiografia em grande parte branca e colonial ainda praticada por aqui.
Na capa do volume, escrito pelos historiadores Flávio Gomes e Lilia Schwarcz em conjunto com o artista visual Jaime Lauriano, está estampado o retrato de uma das diversas personagens da enciclopédia, Afra Joaquina Vieira Muniz, que viveu em Salvador, na Bahia, no século 19, e representa bem a complexidade do regime escravagista da época.
Muniz, que teve sua liberdade comprada pelo marido e ex-senhor, Sabino Francisco, de origem africana como ela, herdou uma série de bens valiosos quando ficou viúva, incluindo a propriedade sobre as escravas recém-libertas Severina e Maria do Carmo. Embora estas tenham recorrido à Justiça para sair das amarras de Muniz, foram obrigadas a servir a dona até a sua morte.
Com olhar e postura imponentes, um belo turbante e joias de ouro valiosas, a africana retratada por Mônica Ventura é só uma das centenas de obras visuais inspiradas no livro. Pinturas, desenhos, fotografias, colagens, tecidos, pedras e até restos de uma boneca serviram como base para os trabalhos artísticos.
Lauriano, que ficou responsável pelo catálogo de imagens, afirma que a principal meta da enciclopédia é “preencher lacunas da história brasileira, mostrar a multiplicidade de personalidades negras e levar dignidade a figuras desvalorizadas”.
“Fizemos de tudo para sair do eixo ‘São Paulo e Rio de Janeiro'”, acrescenta Flávio Gomes. “No livro, tem gente do Brasil inteiro.” Até mesmo nomes mais conhecidos, como o de Zumbi dos Palmares, aparecem sob novas narrativas.
A imagem de Zumbi –muito atribuída a um quadro de Antônio Parreiras, artista branco que viveu entre os séculos 19 e 20–, por exemplo, foi completamente reinterpretada por Arjan Martins. O artista retratou o líder quilombola com cores negras e não detalhou as feições de seu rosto porque, segundo ele, a ideia da existência de Zumbi enquanto liderança política é muito mais potente do que qualquer retrato.
Já no quadro de Andressa Monique, o primeiro palhaço negro brasileiro, Benjamin de Oliveira, é minuciosamente detalhado. A figura traz uma expressão simpática, boca e olhos grandes, nariz largo, e roupas elegantes.
Oliveira foi também ator, compositor, cantor, instrumentista e diretor de espetáculos. De acordo com a enciclopédia, pode ter sido também o primeiro a levar os lundus, danças cantadas de origem africana, para o teatro.
Muitos artistas, assim como Monique, desconheciam –até então– as pessoas que foram convidadas a retratar. É o caso de Mariana Rodrigues, que nunca tinha ouvido falar da rainha Marta, uma das líderes dos quilombos de Iguaçu, no Recôncavo da Guanabara, no final do século 19.
Ela conta que sonhou com Marta logo depois de ler sua história e que a rainha se apresentou como “quem chega pedindo licença”. No retrato, Marta usa um turbante vermelho e segura uma galinha de Angola –em referência “ao elo existente entre os mundos terreno e espiritual” na cultura iorubá, segundo a artista.
Entre os demais nomes que compõem o catálogo da enciclopédia, há Marcelo D’Salete, autor da HQ premiada “Angola Janga”, baseada numa pesquisa de dez anos sobre o quilombo de Palmares, Antonio Obá, artista ameaçado por religiosos em 2018 em meio às polêmicas da “Queermuseu”, a mostra pivô de uma onda de censura contra as artes no país, Panmela Castro, famosa por grafites feministas, Tiago Sant’Ana, o primeiro brasileiro a ganhar uma bolsa de estudos do bilionário George Soros, e Sônia Gomes, uma das artista plásticas mais reconhecidas do momento, famosa por peças de tecido que subvertem as funções de objetos cotidianos.
Organizado em ordem alfabética, o livro traz biografias que datam desde o século 16 até o 21. Há histórias como as de Aída dos Santos, primeira brasileira a disputar uma final olímpica, Trajano, o líder da extinta República do Cunani, e de Pretextato dos Passos e Silva, professor e pioneiro da alfabetização negra no país.
Já entre as figuras contemporâneas, há textos apresentando Marielle Franco, vereadora assassinada há três anos, Cláudia Silva Ferreira, morta brutalmente depois de ser arrastada por um carro de polícia em movimento, em 2014, Amarildo Dias de Souza, morto após comparecer a uma Unidade de Polícia Pacificadora em 2013, e outros nomes que entraram para as estatísticas de negros assassinados no Brasil na última década.
Além do livro, os autores de “Enciclopédia Negra” capitaneiam ainda um projeto em parceria com o Instituto Ibirapitanga e planejam uma série de ações que revisitam o passado brasileiro apagado ao longo dos séculos.
A primeira delas é uma mostra organizada pela Pinacoteca de São Paulo reunindo cem obras, das quais 64 são inéditas, sobre biografados do livro.
Os retratos da exposição, prevista para abrir em 10 de abril –a data pode mudar de acordo com o Plano São Paulo, de combate à pandemia–, integrarão ainda o acervo permanente da instituição.
Pôsteres com imagens e textos adaptados do livro serão também encaminhados a escolas públicas de norte a sul do país, conta Lilia Schwarcz. Outras ações do projeto, que têm parcerias com coletivos negros, serão divulgadas em breve, promete a historiadora.
Fonte: FolhaPress