CAROLINA MORAES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A lista de melhores amigos do Instagram não serve só para seguir a vida desinteressante de colegas trancados em suas casas durante a pandemia -ou, pior ainda, compartilhar as farras clandestinas longe do escrutínio público.
Quem comprou ingressos para assistir à peça “Web-Strips”, em que seis artistas seguem a proposta de desnudar -literalmente- suas carreiras com um strip-tease, foi adicionado à lista exclusiva do perfil da produtora dentro da plataforma e teve dois dias de acesso às performances.
O espetáculo se soma a outras produções que, um ano depois do começo da quarentena, flertam com a linguagem pornográfica em peças virtuais sobre orgia, camboys e strip-tease -e que deram um jeito de driblar as plataformas para pôr nudez em cena.
Nada nesses espetáculos lembra o teatro presencial ou provoca a saudade de compartilhar o momento com uma plateia próxima. O que há de mais próximo do universo da pornografia parece mais adequado a esse consumo entre quatro paredes -e tecnicamente as produções são pensadas já para as plataformas em que vão ser veiculadas.
“Esse projeto estava interessado em pensar memória, legado e trajetória artística por meio de um formato de strip-tease, de desnudar a carreira da pessoa”, conta o diretor de “Web-Strips”, Jorge Alencar.
Seu primeiro projeto que se debruçou sobre essa proposta, o “Strip Tempo”, aconteceu nos palcos. No formato online, os vídeos bem mais curtos e filmados na vertical foram gravados nas próprias casas dos artistas, também como uma forma de dar intimidade à peça.
“Pensamos no OnlyFans, mas ainda é uma rede muito fechada para seus usuários. Então achamos que o Instagram, e particularmente o recurso dos melhores amigos, guardava esse sentido de intimidade e exclusividade, de quem quer compartilhar com alguém, e não com todos.”
É nessa mesma plataforma que acontece “CAM”, da Companhia de Teatro Artera, em que o ator Davi Reis vive um camboy, um rapaz que se despe para as câmeras, e interage com o público. A transmissão será feita ao vivo numa conta fechada para o público.
“Estávamos com essa ideia de fazer um espetáculo que tentasse dar conta da forma e do conteúdo da internet e desse teatro virtual”, diz o ator, que já participou de outras peças online.
Entram na apresentação desse camboy sarado reflexões sobre a sobrevivência financeira durante a pandemia -que se dá também na venda de nudes e trabalhos de exibição online- e sobre como ele vive a sexualidade nesse momento de quarentena, em que estamos distantes dos encontros físicos.
Mesmo que a pornografia seja uma veterana da internet, não é tão simples incorporar a nudez do teatro nessa temporada de atividades online.
Dentro de um espaço físico, a classificação etária e um aviso ao público são suficientes para que corpos nus desfilem no palco sem maiores problemas. Virtualmente, as peças dependem das políticas de uso das redes sociais, muitas vezes nada amigáveis quando o tema é nudez.
Depois de alguns testes, a equipe de “Web-Strips” teve de borrar só partes do corpo dos atores para entrar no ar -no caso, os mamilos femininos.
O próprio diretor lembra que alguns vídeos, como os do artista João Rafael, exibem nus frontais em que o pênis aparece, e isso não foi um problema para a plataforma. A equipe resolveu disponibilizar links fora do Instagram com as imagens não censuradas.
“Ainda, em 2021, o corpo da mulher é o primeiro e, no nosso caso, o único a ser censurado pela plataforma”, diz Alencar.
A produtora Gabi Gonçalves, que já trabalhou com uma série de peças com nudez antes da pandemia, conseguiu manter sua mostra Farofa no Sofá na plataforma Vimeo, que não derruba esse tipo de produção, como acontece no YouTube e no Instagram.
“Quando fizemos a Farofa, em agosto de 2020, caiu a ficha de que estar no ambiente virtual era algo que faria com que vários trabalhos que fazemos não poderiam existir enquanto o espaço online fosse o nosso meio de comunicação”, afirma.
“Web-Strips”, “CAM” e as peças da diretora Janaina Leite, que já apresentou algumas delas virtualmente e tem uma longa pesquisa sobre teatro e pornografia, são espetáculos virtuais que usam a linguagem pornográfica e falam de pornografia. O que as diferem da pornografia então?
Quem procura uma experiência, digamos, que vá direto ao ponto, não vai encontrar nessas peças. Os strips dirigidos por Jorge Alencar não têm como foco necessariamente chegar a uma exposição de partes íntimas ou exibir cenas explícitas, por exemplo -e antes de solicitar qual cor de cueca querem que o camboy use em “CAM”, os espectadores terão de ouvir o personagem Brad desabafar sobre falta de dinheiro e o desejo de clarear seus dentes.
“A linha tênue entre o teatro e a pornografia é também o discurso, e ficar ali simplesmente se exibindo e interagindo. Há um discurso, um contraponto”, diz Ricardo Correa, diretor de “CAM”.
“Estamos vivendo um momento árido socialmente, politicamente e economicamente. As pessoas estão se virando para sobreviver num país em que o arroz custa R$ 25. Isso é um retrato desse vale-tudo que é o Brasil”, afirma o diretor, para quem a pornografia e o ato de vender nudes também apareceram como uma forma de sobrevivência financeira da comunidade LGBT nesse momento.
A diretora Janina Leite afirma que, em suas experiências, o trabalho é “menos sobre a imagem e o que se vê e mais sobre a qualidade de presença”.
“Quando você vai passando pela pornografia grátis da internet, há esse lugar clichê do hiperexplícito. Às vezes as cenas são muito violentas e trazem o misógino da trepada. O que sinto é que nesses espaços de presença há uma outra demanda. Para além da minha expectativa, eles são lugares de relação sobretudo.”
Durante a pandemia, ela esteve à frente do projeto “O Armário Normando” com André Medeiros Martins. A performance, apresentada no Festival Mix Brasil, é baseada no capítulo de mesmo nome do livro “História do Olho”, de Georges Bataille, e cada janela virtual mimetizava um armário próprio, no qual era possível ter experiências eróticas de quaisquer ordens.
Na nova plataforma online do MITsp, a diretora também apresentou seu projeto “Camming – 101 Noites”, parte de sua experiência em plataformas de sexo pago com camgirls durante a quarentena.
Segundo a dramaturga, há uma série de outras dinâmicas que acontecem nesse espaço, como as próprias conversas entre os participantes, que precisam de tempo e de criação de vínculo. “Esses trabalhos estão muito mais no lugar de uma realização de fantasias, projeções e carências do que do lugar da ‘punheta express’.”
Janaina Leite já trabalhava com a intersecção entre pornografia e teatro -ela apresentou, por exemplo, a peça “Stabat Mater”, em que subiu ao palco acompanhada de sua mãe e de um ator pornô. “Às vezes o único escape é a janela da virtualidade. Comecei a pensar esse lugar do virtual não só como uma questão tecnológica, mas muito mais como uma questão dramatúrgica”, diz ela, que reforça o quanto sites de pornografia bombaram durante a quarentena.
André Medeiros Martins, que também criou o livro “Vulgar”, com textos de dramaturgos sobre o tema, afirma que o ambiente virtual apresenta mais caminhos para se trabalhar com a pornografia do que o teatro presencial, em que o espectador não está preservado na própria casa.
Nos “Pornô-Shows”, desdobramento do projeto “O Armário Normando” que aconteceu no aplicativo Zoom, os diretores sugeriam para os espectadores apresentarem outras partes do corpo que não os enquadramentos clássicos do rosto ou do torso. “Falávamos que podiam mostrar, por exemplo, o cotovelo, a nuca, porque existe um espectro de possibilidades de exibição”, conta Martins.
Jorge Alencar afirma que, no caso de “Web-Strips”, muitos espetadores não eram do meio da arte ou próximos do teatro e da dança. “Há nessa peça uma relação com o cabaré, com as artes do burlesco, com a arte drag, com as quais eu tenho relação como artista, que é esse fator mediador. Esse chamado a uma experiência erótica acaba sendo uma mediação para experiência artística.”
Movimentar a libido e a sexualidade nesses espetáculos online, para o diretor, é também uma forma de criar a vitalidade apesar de toda a tristeza e desesperança “num Brasil que não nos dá sossego”.
Cultura
Quarta-feira, 9 de outubro de 2024
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