Cultura
Domingo, 6 de outubro de 2024

‘Cherry’, dos irmãos Russo, perde o vigor ao cair no sentimentalismo

INÁCIO ARAUJO
FOLHAPRESS – Talvez cansados de servir à propaganda de guerra e valentia, como em “Vingadores” e “Capitão América”, os irmãos Anthony e Joe Russo buscaram em “Cherry – Inocência Perdida” um caminho bem diferente, o do drama antibélico.
As coisas não começam muito bem, esta é a verdade, já que Cherry, papel de Tom Holland, talvez influenciado por algum velho filme de Legião Estrangeira, decide se alistar para a Guerra no Iraque depois de uma desilusão amorosa. Sua namorada, Emily, vivida por Ciara Bravo, anuncia que vai a Montreal para seguir os seus estudos. Nem bem ele acabou de se alistar, Emily aparece dizendo que mudou de ideia. Mas a besteira já estava feita.
Começa aí a melhor parte do filme. Mesmo no treinamento, esta parte sempre convencional dos filmes, com seus sargentos bravios a humilhar os recrutas, os irmãos Russo se dão bem. E ainda melhor se sentirão nas sequências de guerra, de que conseguem apreender não apenas a violência explícita -caso do carro que explode, onde o nosso anti-herói poderia estar, matando na hora os seus ocupantes-, como o aspecto doentio dessas guerras que os Estados Unidos levam por interesses baixos, seja a vaidade nacional ou os interesses econômicos, em geral para submeter países do Oriente Médio.
Existe algo de cru na abordagem da guerra, da qual Cherry sai ileso, ao menos fisicamente. Um cru que invade por vezes o terreno do simples mau gosto, como a exposição ostensiva das tripas de um soldado. Em todo caso, leva sua medalha, mas sabe que seu único mérito, à moda do que disse Samuel Fuller, é sobreviver.
A segunda metade do filme nos informará, porém, que na guerra contemporânea nem isso. Ao herói cabe partilhar um bocado de dor, mortes, selvageria, sem saber nem mesmo por que isso ocorre.
Nesse sentido, o que vem a seguir é um tanto previsível. Sobre Cherry não recairão as chagas do desemprego, como Rambo, nem do não reconhecimento por seus esforços pela pátria, mas as da sensibilidade, isso que no vocabulário americano se resume a fraqueza, algo para o que são dotados os perdedores.
Para resumir, Cherry se entrega ao vício, ao qual Emily adere com entusiasmo.
A sequência lógica é ele se entregar ao crime como modo de arranjar dinheiro para comprar suas drogas. Ou seja, o filme perde o vigor dos momentos de guerra e se torna não apenas convencional como parece incapaz de desenvolver a virtude da síntese.
Quando não convencionais, as cenas derivam para um realismo perigoso. Há muito vômito e pouca força, nesse momento do longa-metragem.
Ajuda a se perder, aqui, o sentimentalismo da música insistente. O sentimento, é o que aparece ali onde não há sentimentos -foi o que mais ou menos disse o grande escritor Bioy Casares. Mas na música de cinema pode ser pior, o sentimentalismo esteriliza até o sentimento que existe.
Tudo isso é mitigado pelos momentos em que um olhar, um gesto, salvam a situação. Mas é fato que o interesse pelo filme seria muito maior caso Emily se tornasse uma parceira de Cherry no crime.
Se funciona em “Bonnie & Clyde”, em “Sexy e Marginal”, em “Os Assassinos da Lua de Mel”, em “Mortalmente Perigosa”, todos bem diferentes entre si, por que não funcionaria aqui? Por que Emily tem de permanecer uma parceira tão fiel quanto nula de Cherry?
Bem, OK, o roteiro dos Russo propõe deixar o protagonista reger o caminho de sua consorte. Isso não se pode discutir. Mas se pode pensar que outras opções tornaram o filme mais sintético, mais eficaz, menos pesado (no sentido em que falta às imagens leveza capaz de transmitir a dor dos personagens centrais).