WALTER PORTO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma das questões que mais interessavam à americana Brit Bennett enquanto elaborava seu livro mais recente era “a ideia de que raça é uma ficção, mas o racismo é uma realidade, e o que significa todos vivermos nessa contradição”.
A maneira que ela encontrou para abordar a tese tem um inegável apelo narrativo. “A Metade Perdida”, romance elevado a best-seller e sensação de crítica, conta a história de duas irmãs gêmeas, negras de pele clara, criadas numa comunidade fictícia com obsessão pelo embranquecimento.
As duas decidem fugir de lá, e pouco tempo depois seus caminhos se separam de forma definitiva. Enquanto Desiree se casa com um homem negro, de pele mais escura que a dela, Stella corta os laços com a família e reaparece num subúrbio onde só moram pessoas brancas -e em que ninguém, nem mesmo seu marido e filha, sabe que ela é negra.
Ou seja, ambas têm exatamente a mesma cor de pele. Mas uma leva a vida como negra e a outra, como branca.
“Na primeira vez em que se passou por branca”, descreve o romance, falando sobre Stella, “aquilo pareceu tão fácil que ela nem acreditou em como nunca tentara”. “Ficou quase com raiva de seus pais por terem negado isso a ela.”
“Mas o que tinha mudado nela? Nada, na verdade”, diz um trecho mais adiante. “Não usava disfarce e nem mesmo outro nome. Tinha entrado ali como uma garota de cor e saído como uma garota branca. Tornara-se branca apenas porque todo mundo achava que era.”
Alguém como Stella pode se tornar branca só porque decidiu dizer que é. Se isso é a branquitude, o que significa viver num país que é construído ao redor disso?”, reflete Bennett, que publicou o livro no mesmo mês em que fez 30 anos. “A ideia de raça é frágil, inconsistente, mas ainda assim as suas ramificações são de vida e morte.”
A escritora queria abordar a questão racial num terreno menos explorado. Conta que buscou fugir do embate branco versus negro, centro da maioria das narrativas sobre racismo, e pensou num conflito que fosse interno a uma comunidade negra.
A intenção era pensar sobre “como criamos hierarquias nas nossas próprias comunidades, aprendendo e internalizando essas ideologias tóxicas e as apontando a nós mesmas e aos nossos corpos”.
Por isso, era essencial que a personagem de Stella não estivesse sob um olhar de julgamento. Seria fácil pintar de vilã essa mulher que decide abandonar a família para se incorporar ao mundo de seus opressores. Em vez disso, a autora prefere construir uma lógica emocional delicada para embasar suas ações.
“Eu via Stella como alguém que enxerga a branquitude como um meio para um fim. Ela sabia que, se passasse a ser vista como branca, teria acesso a poder, privilégio e segurança, coisas que sentia que não poderia conseguir de outra forma.”
A abordagem se assemelha à de um clássico da literatura americana, “Identidade”, de Nella Larsen. Publicado em 1929 e só traduzido pela primeira vez no Brasil no ano passado pela HarperCollins, o romance também acompanha duas mulheres negras de pele clara que se distanciam quando uma delas, Clare, se passa por branca para casar com um homem racista.
Bennett assume que se serviu da influência. “Amo como aquele livro reconhece a performance de raça”, afirma, em referência ao ato de Clare. “Ele tem no centro uma personagem que não sente lealdade a nenhuma raça. Nem à negritude nem à branquitude. Isso parecia muito transgressor para a época.”
É algo que ela quis repetir no seu romance. “Desiree tem lealdade à negritude, ela faz um esforço muito evidente de permanecer na comunidade negra. Já Stella não sente essa lealdade. Seus arrependimentos se relacionam mais à solidão que sente no seu isolamento do que a qualquer conexão profunda com a cultura negra.”
Afinal, não é como se Stella tivesse deixado de vez a negritude em direção à branquitude, nem como se passasse a pertencer a ambas -ela se deslocou, na verdade, para um lugar de absoluto não pertencimento.
A chegada tardia de “Identidade” e agora a vinda estrondosa de “A Metade Perdida” -livro que foi distribuído neste mês aos assinantes do clube Intrínsecos, e que chega às livrarias em maio- mostra como o ambiente editorial tem se aberto aos poucos a narrativas mais sofisticadas sobre racismo.
O movimento Black Lives Matter funcionou como um despertador na orelha de muitos setores que resistiam a incorporar a pauta racial -no mercado editorial, isso se refletiu num espraiamento de obras escritas por autores negros. Não demorou, contudo, para que escritores e livreiros manifestassem o receio de que a reação fosse efêmera.
Até o termo “compra performativa” foi cunhado para quando alguém encomenda um livro só para postar nas redes sociais, simulando preocupação com o racismo. Foi bem na época em que “A Metade Perdida” estava saindo nos Estados Unidos.
“Naquele verão, vi muitos leitores brancos indo em manada até livrarias de negros para comprar livros escritos por negros”, lembra Bennett. “Compraram, fizeram encomendas de estoque e, nas poucas semanas que demoravam até o livro chegar, alguns não iam nem mais buscar na loja. Haviam perdido o interesse.”
“Dito isso, quero acreditar que há leitores descobrindo novos autores”, afirma. “Tantos leitores brancos me marcaram no Instagram admitindo que não conseguiam lembrar o último autor negro que haviam lido. Para mim, é difícil pensar em ler literatura americana sem ler autores negros.”
Ela se diz “cautelosamente otimista” quanto a uma mudança mais estrutural. A cautela é por acreditar que isso depende de manter a pressão sobre um mercado editorial ainda majoritariamente branco. “Não vai acontecer se calarmos a boca. Precisamos apoiar uns aos outros como escritores. E os leitores precisam defender as histórias e os livros que amam.”
Cultura
Quinta-feira, 3 de outubro de 2024
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