LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Segundo Pelão, Cartola era um cara sério, que não gostava de blá-blá-blá. “Ficava puto da vida se você perguntasse a ele porque o apelido dele era Cartola”, diz o produtor de discos, que gravou o sambista pela primeira vez. “Mas era um cara muito legal, e tinha um bom português. Era muito amigo de algumas pessoas lá do morro [da Mangueira] há muito tempo.”
João Carlos Botezelli, o Pelão, foi o grande responsável por registrar em disco alguns gênios da música brasileira, como Adoniran Barbosa, Carlos Cachaça e Nelson Sargento, além de Cartola. É graças a ele que podemos ouvir Adoniran cantando “Trem das Onze” ou Cartola interpretando “O Sol Nascerá”.
“Você tem que saber deles, o jeito deles”, diz o produtor. “Não chegar falando besteira. Saber da vida deles, onde apertava o calo. E tudo isso eu procurava saber antes de chegar pra valer. E aí dava certo.”
A trajetória de Pelão é destrinchada no livro “A Revolução Pela Música”, escrito pelo jornalista Celso de Campos Jr. e lançado pela editora dele próprio, a Garoa Livros. O título vem da ideia do produtor que, cansado da política, resolveu que faria uma revolução através da música.
Na crença de Pelão, gravar os sambistas do morro cantando suas próprias composições –muitas já bastante conhecidas nas vozes de outros intérpretes– seria sua maior contribuição à cultura do país. “Ficou fácil falar que o Cartola é legal, que vende discos. Até então, ninguém tinha falado isso”, diz Campos Jr.
Cartola só entrou em estúdio para ser gravado em 1974, quando já tinha 65 anos. Hoje clássico, o disco que leva o nome do sambista foi feito após muita insistência de Pelão, que mesmo depois de ter gravado o álbum, quase viu o trabalho ser em vão.
Ouviu de Marcus Pereira, responsável pelo selo que leva seu nome, que as músicas não seriam lançadas, e as gravações tinham até latido de cachorro –era, na verdade, a cuíca lendária de Moacyr Luz. Pelão convenceu o executivo a lançar o álbum, e eles se tornaram parceiros em outros projetos.
Mas a relação com os cabeças das gravadoras não era exatamente um prazer para o produtor. “Teve uns que eu dei tapa na orelha mesmo. Mas não quero falar mais, já apanharam muito.”
Mais do que um registro da voz marcante de Cartola, o álbum surpreendeu até mesmo o próprio produtor quando entrou em uma lista de discos mais vendidos daquele ano. “Imaginava que fizesse sucesso, mas não tão rápido”, ele diz.
“Tem uma matéria do Globo antes do disco que o tom é de uma tristeza terrível”, diz Campos Jr. “A Dona Zica [mulher de Cartola] fala que ele não pega mais no violão. Chamavam ele pra fazer show por mixaria, isso quando pagavam. Estava esperando o fim da vida.”
Em dedicatória reproduzida no livro de Campos Jr., Cartola escreve que Pelão foi “descobridor do sambista quase morto”.
Pelão dispensava as produções pomposas –que poderiam tornar os artistas mais palatáveis, na visão do mercado– e gravava os sambistas como eles soavam no dia-a-dia. “Ele não gosta de florear o disco. Me disse que gosta de colocar o violão com o suor do cara. Se errasse uma nota, entrava no disco. O próprio Pelão também, entre erros e acertos, sempre foi fiel às suas ideias –e isso transbordou nas produções dele.”
Ele registrou o único disco de Nelson Cavaquinho sendo “ele mesmo”. Autointitulado, o álbum de “Folhas Secas” e “Juízo Final” saiu em 1973, e traz o violão do sambista –e seu jeito particular, rústico de tocar, usando poucos dedos– em destaque. Ele até toca o instrumento atrelado a seu nome, anos depois de ter trocado o cavaquinho pelo violão.
“Era um som realmente deles”, diz Pelão. “O violão magnífico do Nelson. As letras fantásticas do Cartola na voz dele. Porra, era o som de uma época. Pandeiro, cuíca, surdo, tamborim. Tudo tocado como era. Ficava mais bonito.”
Pelão é mais que um produtor de visão aguçada, já que seus méritos estão menos ligados ao trabalho técnico em estúdio do que à atuação humana. Era amigo dos artistas com que trabalhava, e sabia como eles soavam quando cantavam, no morro, entre amigos.
“Eu ia à casa do Carlos Cachaça antes de encontrá-lo na casa de Cartola”, diz Pelão. “Porque eu andava muito pelo morro, então a melhor coisa era ser amigo do Seu Carlos. Um cara muito inteligente, chamado de ‘relações públicas’ na Mangueira. Quando chegava uma autoridade, o Carlos Cachaça fazia discurso. Pediu escola, ganhou. Pediu telefone, ganhou.”
Não é exagero dizer que, sem Pelão, Carlos Cachaça não seria ouvido para além do morro da Mangueira. “Ele tinha participado de uma ou duas gravações de discos da Mangueira. E quando você vai ouvir o disco dele, é de arrepiar, emocionante. O cara com a voz toda quebrada, aos 74 anos, fazendo pela primeira vez um LP dele. Pelão deu a oportunidade a um cara que já nem sonhava com ela. Não fosse isso, a gente não teria nenhum registro do Carlos”, diz Campos Jr.
Adoniran chegou a dizer que Pelão era “o Pedro Álvares Cabral” da trajetória dele. O sambista de São Paulo já tinha gravado nos anos 1940 e 1950, mas apenas compactos de 78 rotações. Esse formato, contudo, tornou-se obsoleto tão logo que o vinil se popularizou junto ao crescimento da indústria fonográfica no Brasil, que viveu provavelmente seu auge nos anos 1970.
“Em 1964, ‘Trem das Onze’ foi gravada pela primeira vez, pelo Demônios da Garoa. Em 1965, estoura no Carnaval. Virou sucesso nacional e internacional, gravada em italiano, em espanhol, sempre na voz de outro intérprete”, diz Campos Jr. “É só pensar que se passaram dez anos e ninguém teve a ideia de gravar o Adoniran cantando ‘Trem das Onze’.”
Pelão levou o sambista, então com 64 anos, ao estúdio em 1974, para registrar pela primeira vez clássicos como “Saudosa Maloca” e “As Mariposas”. “No caso do Pelão, o ‘se’ não precisou entrar em campo, porque ele foi lá e gravou.”
Pelão não atribui a uma sua genialidade o trabalho fundamental para a música popular do Brasil. Diz que os executivos de gravadora tinham conhecimento do trabalho dos sambistas. “E [tinham] poder também. Só não fizeram porque são uns vagabundos.”
Ele diz que chegou a ouvir de Manoel Barenbein, então diretor da Phonogram, que “isso aqui não é um asilo”. Mas sua determinação e teimosia costumavam falar mais alto.
O trabalho de Pelão ainda inclui um tributo ao seminal Donga com cantores como Elizeth Cardoso e o primeiro disco de Nelson Sargento. Tudo com um método de atuação bem pouco ortodoxo.
Na introdução de “A Revolução Pela Música”, Aldir Blanc, amigo do produtor, diz que não há dinheiro que pague a contribuição de Pelão à cultura nacional. Também lembra de algumas noitadas bebendo cerveja, e afirma que “perdemos mais do que conseguimos repor”.
Mas o bar era também o escritório de Pelão. Campos Jr. diz que ele tinha uma habilidade especial para fechar acordos na madrugada, e cumpri-los no dia seguinte. “Era chato que, no outro dia, você tinha que acordar muito cedo. E aí já chegava meio puto. ‘Lembra do que nós combinamos? Então, vamos lá’. Mas funcionava.”
Pelão não enriqueceu com os discos que produziu nos anos 1970, mas colocou em prática sua revolução pessoal. “Meus discos eram baratos, dava pra pagar fácil. E a gravadora tinha um puta retorno, né? Nunca fui muito caro. Cultura não custa caro. O que precisa é de boa vontade. Só não vem querer ficar rico com cultura que eu te dou um tapa na orelha.”
Cultura
Quarta-feira, 24 de julho de 2024
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