udo na palma da mão. Tudo na porta de casa. É mais do que óbvio, é até intuitivo, prever que as empresas de delivery estão entre as ganhadoras dos desafios que surgiram com a pandemia.
Mas, dados obtidos com exclusividade pelo EXAME IN do App Annie, solução de inteligência de dados da indústria de aplicativos, mostram que o desafio para 2021 dessas companhias será como aproveitar o legado do tal do novo normal.
A questão é global, mas no caso brasileiro tudo indica que a Rappi vai testar mais do que nunca seu modelo de profundidade e sua busca pela diferenciação frente às concorrentes. A companhia, que nasceu na Colômbia e reforça sua identidade latino-americana, é a única entre as três maiores plataformas do país — que têm iFood e Uber Eats, como primeira e segunda colocadas — que pode terminar 2020 com menos usuários ativos do que começou.
Em dezembro de 2019, a Rappi tinha 6,5 milhões de clientes ativos e fechou novembro com 5,9 milhões — após um pico de 8 milhões em abril. A empresa defende não ser isso o mais importante pois é, do trio, a única com estratégia e posicionamento de superapp. Suas soluções de entrega e transporte vão muito além do restaurante e do mercado — no aplicativo é possível comprar carro e até contratar diversos cursos e até serviços de limpeza.
Os números dessa indústria são como ouro: só garimpando. A líder iFood é quem, até agora, teve o melhor desempenho na sustentação dos hábitos pandêmicos: terminou 2019 com 30 milhões de usuários ativos e agora, em novembro, estava com 35,6 milhões, o número mais alto do ano.
Já o Uber Eats, embora tenha consolidado sua segunda posição no país, termina 2020 como fechou 2019, com pouco mais de 11 milhões de contas aivas, após o auge de 13,2 milhões em abril.
O consolidado até novembro de sessões ativadas nos aplicativos repete os sinais de que a Rappi tem grandes desafios para 2021. O App Annie mede quantas vezes os apliativos foram abertos, seja para alguém apenas se informar se um restaurante está aberto ou para fazer uma compra de fato.
Em 2019, o iFood teve 6,4 bilhões de sessões iniciadas e, neste ano até novembro, 8,6 bilhões — um aumento de 34% até agora. O Uber Eats passou de 1,6 bilhão para 2,2 bilhões nessa comparação — alta de 37%. A Rappi, contudo, ficou praticamente estável em 1,1 bilhão de sessões.
“Não quero ser tudo para todo mundo.” É dessa forma que Sérgio Saraiva, presidente da Rappi que assumiu o posto em janeiro, explica que seu foco são apenas as classes A e B — que podem pedir comida pelo aplicativo e ainda usar outros serviços. É como se enquanto as demais empresas tivessem um olhar de expansão horizontal, a Rappi entendesse que o crescimento vem de forma vertical – ou seja, do aprofundamento dos serviços fornecidos aos usuários. Vender mais coisas para as mesmas pessoas.
“Na nossa visão estratégica, ganhamos muito com a pandemia”, diz ele, apontando justamente a questão da variedade de serviços, que a pandemia tornou mais apelativos para os usuários. Mas prefere não revelar dados. De acordo com Saraiva, o valor total das vendas que passaram pelo aplicativo em 2020 é equivalente a 2,5 vezes o total de 2019.
Já Diego Barreto, chefe financeiro e de estratégia do iFood, é mais expansionista. Acredita que o maior saldo da pandemia foi o destravamento de restaurantes que não tinham conhecimento de como operar via aplicativos e tiveram que aprender, pois a entrega de refeições foi determinante para a sobrevivência. “Agora que entenderam e aprenderam como fazer, não vão mais abandonar o delivery.” A lógica se aplica tanto para o pequeno restaurante de bairro e familiar, como para as grandes grifes.
O executivo explicou que muitos restaurantes temiam que o delivery não fosse adequado a sua proposta de valor. Ele se refere a nomes badalados da gastronomia como Fasano, Piu e Fogo de Chão, entre outros. “Mas eles viram que a comida chega rápido e boa e que dá para operar com entrega. Agora, ninguém quer abandonar porque é parte importante da receita.”
Rappi experimentou o mesmo movimento no que diz respeito às etiquetas e agregou a sua rede Arturito, Jiquitaia, L’ Entrecote Olivier, Rubaiyat, Ruella, Sal Gastronomia, entre outros — sempre com a meta das classes A e B.
Os dados fotografados pelos dados da App Annie apontam que a Rappi perdeu market-share, enquanto as demais ganharam. Os dados nacionais apontam que iFood tem entre 75% e 79% do mercado. Já Uber Eats tem uma fatia entre 9% e 11% e Rappi, de 6% a 5%. iFood e Uber Eats ampliaram suas participações e mantiveram até agora, mas Rappi perdeu após a reabertura.
Saraiva diz que não gosta de olhar os dados nacionais. “Eu meço minha participação de mercado por bairro. Não é nem por cidade”, explica, devido à dedicação ao público de maior renda. O executivo aponta que as comparações entre os três é imperfeita, não só pelo foco, mas porque a Rappi opera com mais verticais e em um número muito menor de cidades.
Nesse momento, a empresa está presente em 30 cidades do país, com potencial para alcançar até 100 onde possui operações pontuais, segundo o executivo. Uber Eats encerra a quarentena em 150 municípios e o líder iFood, em 1.100.
Hiper-irracionalidade
Desafio para 2021 será acabar com o excesso de descontos e de premiações, ou até o famoso cash back, que são comuns no setor. O Uber Eats destacou ao EXAME IN que essa questão é vital para o futuro e qualifica o ambiente atual como “hiper-irracional”.
A companhia americana não abre dados por região. Mas, no balanço consolidado do terceiro trimestre, é possível ver o esforço para a redução da perda de dinheiro. O total movimentado na plataforma aumentou 134%, e alcançou 8,55 bilhões de dólares — um ritmo de expansão superior ao segundo e ao primeiro trimestre. A queima de caixa (o negócio ainda não atingiu o break-even e o ebitda é negativo) foi reduzida em 42%, para 183 milhões de dólares.
“Muitas das startups de delivery têm se ancorado em usar capital para comprar seu caminho até o crescimento. Mas esse capital está ficando mais caro e pode secar. Acreditamos que a categoria de delivery vai passar por um movimento similar ao que aplicativos de mobilidade passaram recentemente, em que as condições de mercado se tornam mais favoráveis à medida que as empresas enfrentam investidores do mercado público”, destacou a empresa, que respondeu questões por email.
Antes de abrir capital o Uber levantou mais de 25 bilhões de dólares em 25 rounds de financiamento. Desse total, o SoftBank (por meio do Vision Fund) liderou aportes de 9,3 bilhões de dólares.
Pedir para que as empresas contem quanto gastam com promoções e incentivos é quase pecado. Mas há indicadores de como o bolso cheio faz a diferença. Um olhar esticado de desempenho das três mostra como o número de usuários ativos da Rappi cresceu após um aporte de 1 bilhão de dólares recebido em janeiro de 2019, liderado pelo mesmo SoftBank — repetindo o que houve com iFood, após a chegada da Prosus, e com Uber Eats, no pós-IPO. A diferença é esses outros dois seguiram em expansão a partir de então.
O total de usuários ativos por mês da Rappi que estava em torno de 4 milhões em fevereiro e março do no ano passado saltou até 7,3 milhões em agosto, quando começou a cair. Voltou a crescer apenas com a pandemia e a cair após o pico de abril. Em setembro deste ano, a empresa retornou aos investidores e, dessa vez, precisou reunir 77 para levantar mais 300 milhões de dólares (no total já captou cerca de 1,7 bilhão de dólares).
Embora tenha se capitalizado, Saraiva reforça que não fará loucuras e não vai “comprar mercado”. A companhia, segundo ele, não vai buscar crescimento a qualquer custo. Há expectativa de que a Rappi se prepara para um IPO entre fim de 2021 e 2022. O executivo sobre isso nada fala (nem nega, nem confirma). “Não sou porta-voz para o assunto.”
Com a vantagem de ter sido pioneiro, o iFood teve apenas uma rodada de capitalização, de 500 milhões de dólares, em 2018, liderada pela discreta Prosus (que abriga os ativos internacionais de internet da sul-africana Naspers). Sempre que questionada, a empresa reforça que se tornar uma empresa aberta não está no radar.
É guerra
Ainda que todo mundo tenha como discurso a rentabilidade, o capítulo mais sangrento da briga pode ser o próximo — a briga não é só pelo cliente, é também pelo restaurante. Expansão ainda é a meta. E o caminho até o usuário começa na alimentação. Até mesmo Saraiva admite a importância essa porta de entrada. É o que traz a recorrência, meta de todo mundo que opera com produtos e serviços no varejo.
Não por acaso, a 99, que expandiu suas verticais também está buscando seu lugar ao sol em alimentação e a Magazine Luiza fechou em setembro a compra do AiQFome, a novata paranaense que saiu uma fatia de mercado de 2,2% em setembro para 3,1% em novembro e já tem presença em 350 cidades. Está bem claro para todo mundo que a meta do Magalu, que vale mais 160 bilhões de reais na B3 e tem mais de 30 milhões de usuários ativos por mê em seu aplicativo, é sim ser um superapp. E do fôlego dessa turma ninguém duvida.
É de conhecimento público que a Rappi levou o setor ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Desde o IPO do Uber, ficou evidente que torneira para esse negócio não tem mais o mesmo fluxos. Quanto menos dinheiro há no setor, mais se intensifica a briga do argumento.
No centro da questão estão os contratos de exclusividade que a empresa alega serem adotados de forma anticompetitiva pelo iFood. Com um número cada vez maior de restaurantes, a empresa se torna também ‘dona’ de todo esse fluxo de usuários. A partir daí, vira um esquema Tostines: atrai mais restaurante porque tem mais fluxo de clientes e tem mais usuários porque tem mais opções.
O Cade sequer tornou público o processo, o que faz com que nenhuma das empresas aceite falar do assunto. Os argumentos terão de ser conferidos pelo regulador da concorrência.
Na pandemia, todo mundo foi atrás de expandir sua base de cadastros de restaurantes e mercados. O Uber Eats deu destaque ao assunto na apresentação de resultados, ao apontar um aprofundamento da relação com o Carrefour no Brasil e no Chile — que começou a pandemia exclusivamente na Rappi e agora abriu em outras plataformas.
Ao EXAME IN, o Uber Eats, contou ter expandido em 34% o total de restaurantes atendidos no Brasil desde março. Na América Latina, a plataforma conta agora com 70 mil opções em sua plataforma. Já o iFood, com presença em quase 20% das cidades do país, trouxe 100 mil novos nomes, com aumento superior a 50%. A Rappi, com sua lupa, ampliou em 1.000 — dado não confirmado por Saraiva.
A preocupação que a Rappi tem manifestado no setor é o controle do iFood sobre o fluxo de clientes. Entende que esse mercado precisa passar por uma quebra de exclusividade semelhante ao que ocorreu no passado com as cervejas nos bares e os cigarros e os sorvetes nas padarias, segundo fontes que participam dessas discussões — que envolve também a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
O iFood não quer falar do assunto de forma alguma. Mas em artigo nessa semana escrito à EXAME, em resposta às críticas feitas por Gesner Oliveira, um dos ex-conselheiros do Cade mais conhecidos, Diego Barreto diz que os acordos de exclusividade do iFood são calcados em contratos de financiamento para expansão. A busca por garantir o aproveitamento desse crescimento entraria, portanto, na conta de retorno. Os concorrentes, porém, não têm essa percepção. No artigo Barreto afirma que a exclusividade é uma prática recorrente no setor e que os percentuais desses contratos sobre sua base total são “muito menores” que de seus concorrentes.
2020 ainda não acabou, a pandemia ainda não acabou, mas os desafios de 2021 já estão valendo para o setor de delivery.
Fonte: Exame