SILAS MARTÍ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O infarto asfixia o corpo, suspende a vida num espasmo quando não chega a matar. Paz Errázuriz imagina isso acontecendo à alma, a implosão da identidade que deixa em seu rastro estranhas carcaças vivas ainda que por milagre, restos a ensaiar um retorno ao chão que faça sentido.
O olhar vítreo, descompensado dos internos do manicômio que ela retratou na série chamada “O Infarto da Alma” traduz esse afogamento. Eles aparecem aos pares, enamorados. São casais que se encontraram à revelia da razão, enclausurados por paredes de concreto num mundo destinado aos desajustados, aos que não se encaixam na realidade.
Era, aliás, atroz a realidade lá fora. Quando essas imagens circularam pela primeira vez, o Chile onde a artista nasceu e construiu a sua obra saía da ditadura de Pinochet não sem enfrentar abalos de outra ordem, da violência desmedida ao choque de uma reforma econômica que deixou um legado de excluídos –muitos deles foram às ruas no ano passado e forçaram a capitulação de mais um governo.
Os excluídos –loucos, miseráveis, travestis, artistas de circo, lutadores de ringues clandestinos, talvez todos infartados de alma– povoam as fortes imagens de Errázuriz ao longo das últimas décadas.
Mas a sua não é uma fotografia de alcova. Isso é nítido na retrospectiva da artista agora no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Esse amplo recorte mostra que, antes de mergulhar nos submundos impenetráveis, tão sujos quanto magnéticos que deram fama à sua obra, Errázuriz estava na rua, registrando os protestos contra a ditadura de seu país, em especial a militância feminina, e algumas das vítimas dos confrontos, daquelas alvejadas por jatos d’água aos despossuídos a dormir pelas calçadas.
É no choque entre a razão movida pela raiva e a esperança adormecida que a obra de Errázuriz encontra fôlego.
Suas mulheres da linha de frente nos protestos não têm medo da câmera. Enfrentam a lente, impávidas. Elas são arquétipos da heroína em combate, tão seguras de ter pela frente um destino de conflito que lembram a placidez enganosa dos retratos do americano Robert Frank ou do alemão August Sander, artistas que construíram, cada um à sua maneira, poderosos panoramas de suas sociedades.
Errázuriz, no entanto, parece ter encontrado a sua verdade longe da luz do dia, nos inferninhos, nos manicômios, nos ringues de boxe, nas lonas de circo. Isso, que pode ser visto como o segundo e talvez mais corajoso ato de sua obra, era o passo lógico para uma artista preocupada em saber onde estão as vítimas, os desajustados, os apagados por um regime autoritário, embora seja um tanto reducionista pensar toda a sua obra só como um diário às avessas do Chile de Pinochet.
Na série mais forte da mostra, a artista escancara o escopo mais amplo de seu trabalho. Ali, os transexuais que se prostituíam nos bordéis de Santiago posam para a câmera em atos desconstruídos de sedução. No olhar corrosivo, uma fragilidade latente em tensão com os traços masculinos de seus rostos –já maquiados, prontos para o cliente.
Sempre há um espelho nessas imagens, o espelho da penteadeira que reflete uma pose ensaiada, o espelho no alto da parede que multiplica a agitação de uma festa. Errázuriz deixa ver o mundo e seu duplo em todo o seu esplendor.
Os rostos angulosos dessas modelos, desafiando os padrões e qualquer limite entre masculino e feminino para arquitetar outro ideal de beleza, ali surgem duplicados, junto das estampas dos vestidos, dos detalhes do papel de parede do bordel, das cortinas e dos tapetes. É a realidade refletida com ecos berrantes.
Enquanto surgem essas novas mulheres, armadas para seduzir mas encarando no espelho a própria solidão narcísica, os lutadores nas imagens de Errázuriz parecem despidos de sua virilidade. São corpos musculosos flagrados em repouso, ostentando cicatrizes, curativos –todos eles heróis derrotados, o nocaute é explícito, a força drenada.
Errázuriz retrata todos esses corpos desviantes diante do abismo do espelho, afirmando que nós somos eles, que o outro se agita dentro de nós. São retratos que ensaiam o nosso encontro com um duplo não dito, a visão do avesso que trazemos na carne.
Cultura
Domingo, 19 de janeiro de 2025
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