INÁCIO ARAUJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Estrelas de cinema são uma coisa muito particular. Vejamos o caso de Sophia Loren – ela está com 86 anos, poderia muito bem continuar em estado de aposentadoria, deixar na lembrança dos fãs a imagem de seus dias de juventude etc. Mas, depois de 11 anos fora do cinema, topou dar uma mão ao filho, Edoardo Ponti, e assumir o papel principal de “Rosa e Momo”.
Com isso, Ponti provou, pelo menos, ter a mesma intuição de produtor que seu pai, Carlo Ponti, já que Loren, com toda a idade, com toda a maquiagem, com tudo mais, ilumina a tela cada vez que aparece no filme da Netflix.
Digamos que a intuição do filho talvez não fique só por aí. Ele tomou por base um romance célebre e altamente adaptável a cinema como “A Vida pela Frente”, de Émile Ajar. É buscar um caminho seguro – Moshé Mizarhi levou o Oscar de filme estrangeiro de 1978 por sua versão, com Simone Signoret no papel de Rosa. Tanto mais que o livro não se tornou famoso só por existir, mas também pelo escândalo que causou.
A saber, Émile Ajar não era senão Romain Gary, romancista famoso com seu próprio nome, que adotou o pseudônimo num momento em que andava em baixa com a crítica.
Resultado –seu livro foi tão bem avaliado (não era o primeiro sob o pseudônimo, que se diga) que acabou ganhando o Goncourt, o mais importante prêmio das letras francesas.
Não haveria problema, a não ser pelo regulamento do prêmio, que impede o mesmo autor de ganhar duas vezes –Gary é considerado um dos mais destacados escritores franceses da segunda metade do século 20. De todo modo, a mudança de nome para Émile Ajar ficou em segredo até a morte do escritor, em 1980.
Nessa altura, o filme já havia sido adaptado uma vez, com Simone Signoret no papel de Rosa, que agora cabe a Loren.
Rosa é a ex-prostituta que hoje se ocupa dos filhos de outras prostitutas (mediante um pagamento modesto).
Uma particularidade é essencial. Rosa é uma judia que passou por campo de concentração e ainda ostenta aquela infame numeração criada pelos nazistas impressa em seu braço.
Rosa se empenha nos cuidados às crianças. E aqui outra particularidade –elas são negras, judias, árabes.
O caso de Mohamed, ou Momo, é especial. Não se trata de um menino deixado pela mãe, mas de um órfão de que seu pai adotivo, um médico amigo de Rosa, não consegue dar conta. Momo é rebelde o bastante para iniciar uma perigosa carreira no tráfico, por exemplo, e desprezar todo tipo de escola.
Promover a aproximação entre Rosa e o intratável jovem é um desafio. E, admitamos, ele ocorre de maneira um tanto inesperada, como se houvesse um buraco no roteiro. No entanto, o diretor sabe preservar a intenção central da trama –postular que judeus, muçulmanos, negros, brancos são todos parte da mesma humanidade.
A atualidade da adaptação é óbvia, numa Itália em que os imigrantes de uma recente onda foram recebidos como um incômodo capaz de levar a extrema direita local ao poder (ou quase).
Mohamed, negro, senegalês e muçulmano concentra em sua imagem tudo que poderia desagradar a uma Itália ainda não refeita da crise de 2008.
Não é um mérito menor de Edoardo Ponti ter convencido a mãe a deixar a aposentadoria segura para correr os riscos de um retorno.
Sophia Loren foi bem dirigida e bem protegida pelo filho. Mas não se pode esquecer da bela estreia do jovem Ibrahima Gueye, como o menino senegalês Momo (é pronunciado Momô). E ainda que trouxe a atriz transexual Abril Zamora para o segundo papel feminino.
São pequenas audácias que, no conjunto, ajudam a diferenciar “Rosa e Momo” na multidão de ofertas que estão agora na Netfllix.
No mais, Ponti fez um filme padrão, mas que não passa vergonha, não se notabiliza pela banalidade, e muito menos envergonha o nome de seus ilustres pais
Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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