CLARA BALBI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não são poucos os que descrevem Lygia Clark como uma das artistas brasileiras mais importantes do século 20, empatada com Tarsila do Amaral. Ao tirar suas criações da parede e as lançar no espaço, no corpo do outro, ela deu um passo sem volta em direção à arte atual.
Entre recordes nos leilões e retrospectivas em museus como o MoMA, a musa do neoconcretismo ainda se consolidou como um nome global. As exposições planejadas para celebrar o seu centenário, completado agora, refletiam isso –tinham sido organizadas pela feira portuguesa Arco Lisboa e pelas sedes do Guggenheim em Bilbao, na Espanha, e em Veneza, na Itália, mas foram suspensas ou adiadas por causa do coronavírus.
Quem vê essa aclamação toda talvez nem imagine que a artista terminou a sua vida um tanto apagada no circuito, se queixando de uma gripe que nunca passava, segundo a crítica e curadora Maria Alice Milliet.
Mais importante, talvez não saiba que, nos últimos anos, Clark renunciou à própria arte. Ela se declarou uma “não artista” e passou a se dedicar a uma prática terapêutica experimental que desenvolveu.
Não é como se essa decisão não fizesse sentido em relação à sua trajetória, alerta o também crítico e curador Paulo Herkenhoff. Afinal, ele diz, a formação conceitual de Clark se deu no movimento neoconcreto. Ali, na companhia de críticos da envergadura de Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, teve contato com áreas como fenomenologia, linguística –e, é claro, psicanálise.
Além disso, a própria obra da artista foi se encaminhando para uma desmaterialização, afirma Milliet. E, sem objetos, Clark fica “sem lugar entre o artista e o sistema”, como ela mesma afirma numa carta a Hélio Oiticica escrita em 1971. “Meu trabalho, que de um ano e meio para cá aboliu completamente o objeto e se exprime somente pela parte gestual, está fora de qualquer esquema de arte.”
Talvez um dos maiores pontos de ruptura nesse sentido sejam os “Bichos”, dos anos 1960. As esculturas metálicas, que mudam de forma ao serem manipuladas, negam a ideia de uma obra de arte a ser contemplada de longe.
Mais tarde, Clark criou trabalhos que dependiam ainda mais do público para ganhar forma. É o caso do “Túnel”, em que precisam atravessar um extenso tubo de pano com furos, emulando um nascimento. Ou “O Eu e o Tu”, dupla de macacões com aberturas que permite a quem os vestisse explorar o corpo do outro.
Até que, a certa altura, esses objetos que servem de estímulo para a interação do público se tornam cada vez mais banais, segundo afirma Milliet.
São seus “Objetos Relacionais”, saquinhos, tubos de borracha, canos de papelão, pedras e conchas que Clark usava para fazer surgir sensações ou lembranças, de início com seus alunos, na França, e depois com seus ditos pacientes.
Ao contrário do que acontece na psicanálise freudiana ou lacaniana, porém, a esses pacientes bastava sentir – eles não precisavam elaborar um relato, uma narrativa. “Por isso falo de uma experiência quase xamânica”, acrescenta a crítica e pesquisadora.
De todo modo, Clark “não só não faz mais um objeto concreto, como não dirige tanto as ações”, segundo Milliet. “Como uma observadora, ela se coloca fora delas. Temos que entender que a ausência de um objeto de arte impede toda uma operação de mercado, de museu, de obra a ser contemplada capaz de satisfazer um colecionador.”
“E este é um momento limite, em que os artistas forçam esse confronto com o mercado de arte, e por isso não fornecem material para que ele funcione”, completa Milliet.
Herkenhoff é outro a ressaltar que Clark não estava isolada na sua decisão de abandonar a arte, acompanhada, por exemplo, de Hélio Oiticica. Aquele era um momento de crise no campo –política, por causa da ditadura, mas também de percepção, diz o curador. Abandonar a arte era, acima de tudo, uma maneira de se afastar do sistema estruturado em torno daquilo.
Mesmo assim, não é como se Clark tivesse rompido completamente com o circuito. Um dos organizadores da retrospectiva da artista no MoMA, o venezuelano Luis Pérez-Oramas lembra que até os últimos anos ela seguiu produzindo versões das pinturas construtivas do início da carreira.
Clark chegou até a namorar o maior marchand do país na época, conta Herkenhoff. “Ela tinha uma visão crítica da transformação da obra em mercadoria, mas sabia que o mercado era necessário.”
“O que ela desfaz é a certeza ideológica da arte. Ela assume que essa experiência é crítica, e só é possível na incerteza. E faz isso radicalmente”, concorda Pérez-Oramas. “Ela inscreveu a contradição da arte dentro da arte.”
Mesmo assim, Herkenhoff recorre a um pensamento de Hélio Oiticica para lembrar que é mais fácil apontar as contradições dos outros do que ver as próprias. “Essa questão de não ser artista talvez significasse mais que a arte deveria ganhar um novo modelo, fora do canônico.”
Contradições que, no caso de Clark, parecem só ter se multiplicado desde a sua morte, aos 67 anos, em 1988.
Sua obra acabou engolida por aquele mesmo mercado que ela negou, vendida em feiras e leilões por milhões. Seu espólio virou pivô de uma briga judicial entre seus herdeiros que foi parar nas páginas dos jornais quando, há cinco anos, eles foram temporariamente impedidos de vender os itens sob a sua guarda.
Por fim, tanto os “Objetos Relacionais” como os “Bichos” foram parar em pedestais de museus mundo afora. “Eles ficam quietinhos, em pé. Nada a ver com a manipulação que era a ideia dela”, diz Maria Alice Milliet, sobre os “Bichos”.
Pérez-Oramas vai mais longe. Segundo ele, “qualquer mostra da Lygia está condenada ao fracasso, porque o sentido da obra dela é desmontar”.
O curador afirma que isso acontece porque uma das condições dos museus hoje é propor um espetáculo universal, a que todos podem ter acesso.
Mas, acrescenta, trabalhos de Clark como as “Obras Relacionais” exigem do visitante uma decisão de transmutação “quase análoga à experiência de uma conversão religiosa”. “É um relacionamento íntimo”, afirma, adicionando que chegou a sugerir à organização do MoMA que alugassem apartamentos para exibir os trabalhos, mas teve o seu pedido negado.
Mesmo com todas essas dificuldades, a artista segue envolta em fascínio. Os três curadores são categóricos em afirmar a importância de Clark não só para a história da arte brasileira, mas internacional.
Herkenhoff classifica os “Bichos” como um “salto epistemológico”, isto é, um acontecimento que fez avançar o conhecimento artístico. Segundo ele, as noções de autoria conjunta que ela propôs naquelas esculturas ecoam ainda hoje, em especial numa produção contemporânea que “torna o outro coautor e sujeito de uma transformação”.
E a obra de Clark se faz também “particularmente relevante num momento como este da pandemia, já que o sentido dela tem a noção de cura”, afirma Pérez-Oramas.
Além disso, é possível que aquele mesmo dilema que fez Clark abandonar a arte tenha voltado a nos espreitar com ainda mais força, diz Milliet.
“Ele é o seguinte – a arte acabou? Será que o limite daquilo que entendíamos como arte, conceito que vem desde a Renascença, se aplica ao que se faz hoje?”, questiona a curadora, mencionando criações como a do italiano Piero Manzoni, que alegava ter enlatado as próprias fezes e vendido, ou os tantos performers que nos anos 1970 chegaram às vias da automutilação.
Clark explicita esse dilema numa outra carta a Oiticica, sem data, da época em que vivia em Paris. “Se o homem não conseguir uma nova expressão dentro de uma nova ética, ele estará perdido. A forma já foi esgotada em todos os sentidos”, ela escreveu.
Mas então logo ofereceu uma resposta. “Arte agora é arte de colhões. Quem não os tiver está por fora.”
Cultura
Quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025
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