Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024

Filhos de Glauber Rocha espelham o mal-estar do país na ficção e no documentário

NAIEF HADDAD
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dois dos cinco filhos de Glauber Rocha seguiram a carreira do pai na direção de cinema -Paloma, 60, de modo intermitente, e Eryk, 42, com uma produção mais contínua.
Seria injusto até, comparar as criações deles às do pai, o maior nome da história do cinema brasileiro. Ambos, porém, têm algo interessante a dizer e sabem como o fazer, conforme se nota nos filmes que eles lançam em 2020.
“Antena da Raça”, dirigido por Paloma em parceria com Luís Abramo, ganha exibição no encerramento do festival Olhar de Cinema, em Curitiba. Ainda em outubro, a produção será apresentada na mostra Cannes Classics, evento paralelo ao festival francês.
“Breve Miragem do Sol”, de Eryk, está no Globoplay.
“Antena da Raça” é um documentário que retoma trechos do inovador programa de TV “Abertura”, apresentado por Glauber de 1979 a 1980.
Paloma e Abramo articulam pontos de contato entre o Brasil de quatro décadas atrás, os anos derradeiros da ditadura, e o presente turbulento.
Há, por exemplo, entrevistas recentes com Zé Celso e Caetano Veloso, nomes lembrados por Glauber na sua incursão pela televisão, que ocorreu meses antes da sua morte, com apenas 42 anos.
“Breve Miragem do Sol”, por sua vez, é uma ficção no tempo presente. Depois de perder o emprego e de se divorciar, Paulo, papel de Fabrício Boliveira, em interpretação excelente, passa a trabalhar como taxista no Rio de Janeiro.
Rodando nas madrugadas, convive com moleques arrogantes da zona sul, um executivo que arma negociatas e uma mulher misteriosa.
Um olhar mais detido, no entanto, revela semelhanças entre os dois filmes, a começar pelo tema da paternidade.
“Antena” é uma homenagem de Paloma a Glauber, uma iniciativa que vai muito além desse filme -é ela a principal responsável pela conservação da obra do diretor.
Paloma nos lembra de uma aparente contradição -em vez de confundir, o discurso quase caótico de Glauber Rocha esclarecia e estimulava os telespectadores que o viam na tela da extinta TV Tupi.
Nessa busca desesperada por um país incapaz de se reconhecer, Glauber prega uma reforma da educação e enaltece José de Alencar e Euclides da Cunha. Ele também exalta o dramaturgo Vianinha, mostrando uma edição desta Ilustrada de maio de 1979.
O personagem do filme de Eryk se sacrifica para pagar a pensão do filho e sofre de saudade do menino. Angústia e melancolia se unem em busca de uma reparação familiar.
Os filmes também se aproximam na abordagem de um mal-estar político e social do Brasil contemporâneo. “Antena” registra cenas do fortalecimento da extrema direita e do avanço da violência policial.
“Breve Miragem” é menos explícito. Mais do que os passageiros atendidos pelo taxista, é a própria cidade do Rio que intimida e ameaça. A saturação das luzes urbanas acentua o incômodo e comprova a maturidade técnica de Eryk.
Ambos os filmes são contundentes, mas “Antena da Raça” perde força devido à profusão de temas que quer abarcar.
São, de qualquer forma, produções bem-vindas. O inconformismo de Glauber sobrevive bem em Paloma e Eryk.