Cultura
Terça-feira, 5 de novembro de 2024

Filme sobre como talibãs ameaçaram o cinema nos acorda para Brasil atual

INÁCIO ARAUJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É uma pena que “O Rolo Proibido” tenha uma única exibição no É Tudo Verdade. Documentário, claro, e no entanto nos reserva as emoções das melhores ficções.
Tudo começa no ano de 1996, quando o governo talibã ordena a destruição de todo o arquivo da Afghan Film, a produtora de cinema que havia resistido a todas as mudanças políticas do país, até então. E não foram poucas. Por sorte, um funcionário informou o pessoal da produtora e houve tempo para transferir o material até um depósito em seguida vedado.
Os encarregados da fogueira foram apresentados então a rolos e rolos de filmes estrangeiros reunidos e queimados. O estratagema salvou as imagens do sinistro objetivo de apagar toda a memória nacional anterior à tomada do poder pelos islamitas radicais. Felizmente.
Graças a isso podemos saber da existência de um rico e pouco conhecido cinema afegão, testemunho de como a sociedade afegã viu a si mesma em diferentes momentos da agitada segunda metade do século 20.
De início temos ficções que lembram vagamente o cinema industrial egípcio (alguém dirá: o modelo jamais seria o cinema indiano, país rival do Afeganistão) e documentários que dão conta de uma sociedade dinâmica e em processo de modernização (as imagens selecionadas lembram certos cinejornais brasileiros dos anos 1950).
As ficções são poucas, mas é grande a paixão dos cineastas, como o Engenheiro Latif, capaz de cair de um tanque em movimento e pensar em, antes de tudo, salvar sua câmera. Eles têm a seu favor, segundo o documentário, a certeza de que o público se vê espelhado em seus filmes.
Por sorte, a paixão cinematográfica dos cineastas é infinitamente maior que a paixão política. Daí eles poderem passar de um governo capitalista a um governo comunista (a partir de abril de 1978) sem maiores dores. Ao contrário, o governo que se instala faz do cinema um meio de propaganda, o que permite aos cineastas trabalharem num número maior de filmes, porém submetidos a uma censura ideológica. Nada muito radical, já que um dos cineastas centrais é chamado a conversar com o novo presidente, que lhes garante que o essencial é que continuem trabalhando para o cinema.
De acordo com o filme, o comunismo pegou bem nas grandes cidades, mas mal no campo, de onde os resistentes mujahidins lançam sua guerrilha com tanto sucesso que, em 1979, a URSS decide mandar suas tropas ao país. Inútil. Em 1992, os mujahidins tomam Cabul. Mas nada disso dura muito: anos depois são depostos pelos radicais talibãs.
O essencial dessa história não raro trágica é que ela permaneceu preservada apesar de todos os atropelos. Suas imagens estão lá para mostrar como as pessoas se vestem, como dançam ou cantam, como marcham, aderem a tal ou tal líder, nos diversos momentos.
Não deixa de ser comovente observar o apreço de jovens cinéfilos por uma antiga estrela, que teve de viver escondida e trocar de nome durante o regime talibã. É adesão ao cinema, mas também à antiga e rica história afegã.
Se o interesse literal de “O Rolo Proibido” é enorme, o filme ganha uma segunda e não menos assombrosa leitura no momento atual, em que a Cinemateca Brasileira seencontra ameaçada. Ali existe um tipo de memória que resiste à ideologização e informa sobre mais de um século de história brasileira. Essa memória é preciosa e frágil. Não precisa tocar fogo para apagá-la. Um pouco de ignorância e descaso podem fazer o serviço.