Cultura
Segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Documentário da Netflix ‘O Dilema das Redes’ assusta, mas oferece poucas respostas a dilema

PATRÍCIA CAMPOS MELLO
FOLHAPRESS – Não será uma surpresa se muitas pessoas abandonarem as redes sociais ou restringirem ao máximo o tempo dos filhos na internet logo após assistirem ao documentário “O Dilema das Redes”, da Netflix. O filme, do diretor americano Jeff Orlowski, é assustador.
Os inúmeros efeitos nefastos das redes sociais não são novidade. Quem não brigou com um pré-adolescente hipnotizado pelo YouTube que deixou toda a lição de casa por fazer? Ou explicou pela enésima vez que não, não estão enterrando caixões cheios de pedra porque a Covid-19 é uma farsa? Ou, ainda, rompeu relações com um amigo de infância que se tornou um extremista político?
Ainda assim, é iluminador ouvir da boca de inúmeros ex-funcionários de Facebook, Google, Twitter e Instagram de que forma as redes sociais e seus algoritmos estão deixando as pessoas viciadas, semeando a discórdia e minando a democracia.
“Quando você olha em volta, parece que o mundo está enlouquecendo. Você precisa se questionar: isso é normal? Ou será que fomos todos enfeitiçados de uma certa maneira?”, diz, no início do documentário, Tristan Harris, um ex-designer do Google.
Harris tentou mudar esse panorama enquanto estava na empresa. Não conseguiu, deixou a companhia e se tornou um grande evangelista dos perigos da internet gerados por decisões de, afirma ele, 50 designers –caras brancos de 20 a 35 anos da Califórnia– sobre 2 bilhões de pessoas.
“Dois bilhões de pessoas terão pensamentos que não teriam normalmente, porque um designer do Google disse: é assim que as notificações vão aparecer na tela para a qual você olha quando acorda.”
Harris também relembra a famosa frase “se você não está pagando pelo produto, então você é o produto” para apontar para o real modelo de negócios das plataformas de internet.
Elas precisam fazer de tudo para manter os usuários conectados o máximo de tempo possível para vender anúncios. E anúncios muito eficientes. Como essas companhias monitoram tudo o que as pessoas fazem –a imagem exata que você parou para ver e quanto tempo gastou olhando, por exemplo–, usam esses dados para vender propagandas supersegmentados.
Um dos motivos que explica o fato de muitas pessoas gastarem horas a fio nas redes sociais é o vício.
“Mídia social é uma droga. Nós temos uma necessidade biológica básica de nos conectar a outras pessoas. Isso afeta diretamente a liberação de dopamina como recompensa”, diz Anna Lembke, diretora na escola de medicina na Universidade Stanford. As pessoas têm que postar uma foto, porque querem sentir o prazer de ter sua imagem curtida. Não conseguem deixar de verificar qual email receberam, porque sabem que podem ter uma surpresa agradável -essa expectativa é viciante.
O documentário se restringe aos males causados pelos algoritmos das redes sociais, que determinam o que você verá na linha do tempo do Facebook, que foto verá no Instagram ou quais vídeos o YouTube vai te recomendar.
Mas não aborda, por exemplo, o problema do WhatsApp, mencionado apenas de passagem. Como lidar com uma plataforma de mensagens na qual circularam boatos mentirosos que levaram a linchamentos na Índia? O que fazer a respeito de um aplicativo ideal para a circulação anônima de notícias falsas que podem influenciar eleições? Isso não tem nenhuma relação com algoritmos.
A mensagem do documentário, no entanto, é tão poderosa que quase esquecemos as infelizes encenações sobre efeitos nefastos das redes.
É importante mostrar uma família sentada à mesa, cada um isolado em sua tela, viciado nas curtidas do Instagram e Facebook, sem se comunicar com o resto.
Também são impactantes as cenas da menina de 11 anos que fica desesperada quando a mãe impõe à família um limite no tempo de tela -a ponto de quebrar o recipiente onde o aparelho está guardado, em uma imagem que lembra dependentes de drogas roubando para sustentar a dependência. Ou quando essa mesma menina desenvolve problemas de autoestima ao ter a aparência criticada em uma rede social.
Mas esse excesso de didatismo soa forçado e infantiliza os espectadores. Quando três personagens interpretados pelo mesmo ator fazem o papel de sociopatas em um bunker, controlando as emoções de um adolescente em uma rede social, o recurso beira ao ridículo.
Mesmo assim, o filme cumpre o papel de conscientizar sobre como as plataformas manipulam e induzem o comportamento das pessoas. Como diz a citação do dramaturgo grego Sófocles no início do documentário, “nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição”.
Não se trata, porém, de uma cruzada ludista. O filme não propõe uma vida sem essas tecnologias.
“É fácil hoje em dia esquecer que essas ferramentas criaram coisas maravilhosas para o mundo. Reuniram familiares perdidos, encontraram doadores de órgãos. Houve mudanças sistêmicas muito importantes graças ao impacto positivo dessas plataformas”, diz Tim Kendall, ex-diretor de monetização do Facebook. “Acho apenas que fomos ingênuos em relação ao outro lado da moeda.”
Infelizmente, o documentário oferece poucas respostas ao dilema. Fala-se em tecnologia humanizada, mas não fica muito claro o que é isso, como seria usado e como serviria para corrigir os efeitos colaterais das redes sociais, sem, no entanto, acabar com elas.