WALTER PORTO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Tudo o que hoje para mim existe é a minha arte; dela me vem toda a preocupação que me achata, mas dela também recebo tudo o mais de que necessito para existir.”
Ferreira Gullar deixou essas palavras em letra cursiva, num diário, quando tinha só 19 anos, morava em São Luís e não fazia muito que usava o pseudônimo no lugar do José Ribamar Ferreira da certidão.
“Se por qualquer circunstância hipotética tivesse eu que abandonar a literatura, bem fácil seria eu me suicidar. Tamanha é a minha indiferença pela vida em si, isto é, prazeres, amores, devaneios românticos”, afirma o trecho de 26 de março de 1950.
Só agora, quando se completam 90 anos do nascimento do escritor, esses diários de juventude vêm a público. E novas peças se encaixam para que se entenda melhor como se formou um dos maiores poetas brasileiros.
A família de Gullar passou a analisar cinco grandes cadernos e anotações esparsas que estavam quase intocados desde sua morte, há quatro anos.
“Não são diários íntimos, até porque meu avô não era essa pessoa”, diz Celeste Aragão, que, além de neta, trabalhava com Gullar e pretende editar o material com Maria Amélia Mello, editora do poeta pela maior parte de sua carreira. “A vida dele era toda entregue à literatura, à arte.”
O período que os cadernos abarcam é vasto. Se a primeira anotação é de um jovem que acabara de publicar sua estreia literária -quatro anos antes do lançamento de “A Luta Corporal”, que marcaria a poesia brasileira para sempre-, a última data de 2007, com o poeta septuagenário.
O único período não contemplado são os anos de exílio na década de 1970. Gullar instruiu um amigo a destruir seus manuscritos dessa época quando voltou ao Brasil ainda sob o cano da ditadura militar, segundo sua neta.
O curioso é que, mesmo nos primeiros diários do jovem maranhense, já havia um tom de registro para a posteridade de um grande poeta. “Se há ali um impulso constante de interrogação do seu fazer poético, tem também uma confiança impressionante no próprio talento”, afirma o jornalista e crítico literário Miguel Conde, biógrafo de Gullar.
No final de um dos cadernos, o poeta faz um comentário ilustrativo, depois de remover uma página por um acaso prático qualquer. “Esclarecimento aos bestíssimos futuros biógrafos e críticos”, escreve. “Peço que não tentem atribuir qualquer sentido à ausência da folha arrancada.”
Um desses diários de juventude, aliás, voltou às mãos de Gullar só poucos anos antes de sua morte. Um homem identificado como José Ribeiro Caldas Filho entrou em contato por email com a ombudsman deste jornal, em 2011, afirmando ter em mãos “há muitos anos, sem que ele o saiba” um caderno manuscrito do autor.
Procurava um endereço por onde restituir ao poeta “essa preciosidade” -no que acabou tendo sucesso. Gullar mantinha uma coluna na Ilustrada desde 2005, tarefa que abraçou com o afinco de toda a carreira, ditando suas últimas crônicas da cama do hospital à neta Celeste.
Esse compromisso já se revelava no rigor dos comentários que abriam o seu diário, em fevereiro de 1950.
“Este caderno íntimo servirá para que mais tarde eu avalie as variações de minha ‘crença’ a respeito da arte e das coisas menos sérias. Deixarei nele as impressões mais vivas do que vivi nas horas de certos dias. E como nem todos os dias terão as horas de grande emoção só esporadicamente estarei aqui para registrar impressões.”
“Ando agitadíssimo”, anotou Gullar um mês depois. “Tanto que temo até ficar maluco. Não me agrada mais conversar acerca de literatura, porque o meu entusiasmo cresce tanto que tenho a impressão, nesses instantes, de que estou suspenso e fora de meu corpo, vibrando estranhamente duma emoção que deve ser um misto de vaidade e desespero. Pois é de desespero a minha situação, hoje em dia, diante do mundo e da vida.”
Conde, que prepara uma biografia do poeta a ser publicada no ano que vem, afirma que os diários enriquecem a compreensão da formação intelectual de Gullar.
“Não havia muito registro disso até agora. É um jovem tentando encontrar seu lugar no mundo, como muitos, mas o interessante é que essa busca, no caso dele, passa pela reflexão filosófica, sobre a própria produção artística e o propósito de fazer poesia.”
O biógrafo argumenta que Gullar não só queria escapar dos modelos convencionais da literatura, mas procurava uma expressão poética que rompesse com a própria linguagem para dar conta da singularidade das experiências da vida.
“É o começo de uma busca que vai dar na seção final de ‘A Luta Corporal’. Aqueles poemas mais incompreensíveis, em que a linguagem se desarticula numa tentativa de dizer algo de maneira absolutamente original.”
É famosa a história de como Gullar teve um despertar para a poesia ao ter uma redação sobre o Primeiro de Maio elogiada pela professora, mas punida por erros gramaticais. Conde acrescenta que isso aconteceu numa aula de curso técnico, no qual o jovem aprendia a confeccionar vestuário e ferraria.
A editora Maria Amélia Mello lembra que o adolescente chegou a achar que não era possível ser poeta, por um motivo simples. “Ele via nos livros didáticos só Gonçalves Dias, Olavo Bilac. Achava que todos os poetas já estavam mortos.”
Descobrir como se formou uma criatividade que moldou as artes brasileiras -o movimento neoconcreto, a poesia de contestação à ditadura, as artes plásticas, a música- pode ser um exercício fascinante. Mas todos os porquês remetem a uma personalidade marcada pelo inconformismo até o fim. E desde o começo.
“Sofro ultimamente de grandes inquietações”, escreveu Gullar ainda no primeiro registro do diário. “Tenho escrito um conto por dia e só após terminá-los senti um pouco de tranquilidade. Hoje não escrevi nada e talvez por isso continue inquieto. Talvez que esta nota sirva de paliativo.””
Cultura
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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