Internacional
Terça-feira, 23 de julho de 2024

Por que parte da internet está pedindo o boicote do recém-lançado Mulan

A aguardada nova versão de Mulan chegou às telas em meio a uma série de problemas. O filme era uma das apostas da Disney para 2020, mas, a princípio, já teve como barreira a pandemia, que o impediu de ter uma estreia tradicional nos cinemas. Agora, sofre também com um pedido de boicote à obra.

A polêmica envolvendo a atriz escolhida para o papel da protagonista, Liu Yifei, voltou à tona com a estreia de Mulan na sexta-feira, 4 — após sucessivos adiamentos por causa da pandemia, a Disney decidiu lançar o filme na plataforma de streaming Disney+.

O pano de fundo são as disputas políticas entre a China e Hong Kong, ilha que é território chinês mas goza de relativa autonomia política desde que deixou de ser colônia do Reino Unido em 1997.

Hong Kong vem sendo palco de protestos massivos há mais de um ano, desencadeados por uma nova lei de segurança nacional que visava permitir que pessoas presas na ilha fossem enviadas para julgamento na China continental.

Liu, que é chinesa, entrou na discussão ao criticar as manifestações na rede social local Weibo no ano passado. “Eu também apoio a polícia de Hong Kong. Agora podem me atacar”, escreveu. “Que vergonha para Hong Kong.” Na ocasião, o comentário já tinha gerado uma onda de críticas à atriz por parte de pessoas a favor dos protestos, em Hong Kong e em todo o mundo.

Agora, o caso voltou a ser lembrado com a proximidade da estreia, e críticos vêm usando hashtag #BoycottMulan (boicote Mulan, em inglês) nos últimos dias.

O ativista Joshua Wong, que se tornou um dos líderes mais conhecidos em Hong Kong escreveu no Twitter que “incentiva a todos que acreditam nos direitos humanos” a boicotar o filme. Wong disse ainda que a Disney “reverencia” o governo chinês em Pequim para garantir a distribuição do filme — a China é hoje o segundo maior mercado de cinema no mundo.

O filme lançado nesta semana é uma adaptação da animação da Disney de 1998, mas, dessa vez, com atores de carne e osso. A lenda original na qual a Disney se inspirou vem de um poema chinês do século 7. No filme, Mulan é ainda muito jovem, mas se finge de homem para lutar numa guerra no lugar do pai e termina salvando a China.

Hoje aos 33 anos, a atriz Liu Yifei tem cidadania chinesa e americana. Quando a escolheu para o papel, a Disney recebeu elogios, incluindo no Ocidente, por colocar no ar a primeira protagonista chinesa em sua história. Mulan é também uma das poucas “princesas” não-brancas — no ano passado, outra estreia de destaque foi o live action Alladin, com a princesa árabe Jasmine interpretada pela atriz britânica Naomi Scott.

Liu nasceu em 1987 na cidade chinesa de Wuhan (a cidade, por sinal, é também o primeiro lugar onde se sabe que o coronavírus começou a se espalhar no fim do ano passado). Com 10 anos, se mudou com a mãe para Nova York, onde morou por alguns anos e obteve a cidadania americana. Depois, ainda adolescente, voltou para a China, onde construiu sua carreira de atriz. Antes de Mulan, ela já havia participado de dezenas de filmes e outros projetos na Ásia.

Diante do caso com a atriz de Mulan, manifestantes em Hong Kong e seus defensores chegaram a alçar ao posto de “verdadeira Mulan” a avista de Hong Kong Agnes Chow, de 23 anos. Chow, ao lado de Wong, é uma das figuras políticas mais importantes nos protestos na ilha e já foi presa diversas vezes pelo governo. Seus defensores afirmam nas redes sociais que a ativista, tal como a guerreira chinesa da lenda, está se sacrificando por seu país.

O filme da Disney também foi alvo de críticas de ativistas da Tailândia e de Taiwan. Taiwan, como Hong Kong, é um território chinês e que busca maior autonomia.

Já na Tailândia, manifestantes vêm tomando as ruas contra a monarquia do país e o governo do general Prayut Chan-o-cha, que deu um golpe em 2014.

“A Disney e o governo chinês sabem que a violência do Estado contra o povo é inaceitável”, escreveu o ativista tailandês Netiwit Chotiphatphaisal.

Um ano para esquecer em Hong Kong (e na Disney)

Apesar dos protestos em Hong Kong, a lei de segurança nacional chinesa entrou em vigor neste ano — justamente em meio à pandemia, quando os protestos cessaram por algum tempo. A extradição desejada no começo não entrou em vigor, mas a nova lei, ainda assim, trouxe uma série de limitações à liberdade política na ilha.

Manifestantes também foram presos temporariamente e os líderes estão sendo processados, em um dos movimentos de maior endurecimento das liberdades políticas da ilha em sua história recente. Eleições legislativas previstas para esse ano foram adiadas pelo governo de Hong Kong, leal a Pequim, e opositores foram proibidos de se candidatar.

Para muitos analistas, o ano está marcando o fim da liberdade que outrora vigorava em Hong Kong. A leitura internacional é que Hong Kong acabou de vez com o modelo de “um país, dois sistemas” e que, agora, será cada vez mais como a China.

É em meio a esse cenário geopolítico complexo que Mulan chega às telas do mundo. Mas apesar dos pedidos de boicote, o real desafio do filme vem do coronavírus: a Disney tentou por muitos meses levar Mulan aos cinemas, mas a pandemia demorou mais a passar do que o previsto.

A produção custou mais de 200 milhões de dólares e a expectativa era quebrar recordes de bilheteria — as outras releitures live action lançadas antes da pandemia, de Alladin ao Rei Leão, vinham sendo um sucesso.

Mulan deveria ter estreado em julho e, depois, em agosto. No fim, a Disney desistiu e optou pelo Disney+, mas Mulan ficará disponível no streaming só para aluguel, com um valor adicional de 29,99 dólares. A produção também está sendo exibida em alguns cinemas selecionados em locais onde a reabertura já está mais avançada.

Em países como o Brasil, onde o Disney+ ainda não está disponível (o lançamento está previsto para novembro), a tendência é que a Disney ainda tente estrear o filme nos cinemas nos próximos meses.

Entre filmes sem bilheteria e parques fechados em todo o mundo, a Disney vem sofrendo brutalmente com a pandemia. O faturamento da Disney no segundo trimestre do ano caiu mais de 40%.

Fonte: Exame