IGOR GIELOW
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alarmado com a ascensão da China, uma Coreia do Norte imprevisível e a pouca confiança que Donald Trump inspira, o Japão deu mais um passo para retomar sua capacidade militar ofensiva.
Na sexta (26), o Conselho Nacional de Segurança do país enterrou os planos para instalar em dois pontos de sua maior ilha, Honshu, o sistema antimísseis americano Aegis Ashore.
A decisão decorre de revisão de custos e das queixas de moradores de cidades próximas, tornadas alvos óbvios, mas tem uma implicação estratégica maior.
O primeiro-ministro Shinzo Abe afirmou que, como opção, o Japão estuda se armar com mísseis capazes de atacar bases de países inimigos antes que elas lancem seus foguetes.
Assim, na prática Abe está dando uma interpretação criativa sobre o artigo 9 da Constituição japonesa, que proíbe o país de possuir armas ofensivas.
A Carta é um legado da derrota do império na Segunda Guerra Mundial em 1945, tendo sido imposta pelos vencedores, os Estados Unidos.
Ao longo da Guerra Fria, com a necessidade de conter a União Soviética no Pacífico, os japoneses foram se rearmando com apoio americano, apesar das limitações.
“Desde então, a estratégia dos EUA é a de evitar a ascensão de poderes regionais. Um Japão capaz poderia minar a estrutura de alianças americana”, diz Phillip Orchard.
Só que a última década, afirma esse analista da consultoria americana Geopolitical Futures, viu a discussão ser retomada com a ascensão da China e sua maior assertividade.
Pequim tem investido em força naval e militarizou o mar do Sul da China, rota marítima vital e que os EUA querem livre, com bases.
Já a ditadura de Kim Jong-un testa, periodicamente, mísseis com alcance de sobra para levar uma bomba nuclear ao Japão.
Por fim, há rivalidades históricas diversas na região. Tóquio ainda não resolveu o status das ilhas Kurilas, disputadas com Moscou, e a relação com a Coreia do Sul é sempre tensa, por evocar a brutal ocupação japonesa de 1910 a 1945.
O veto a possuir bombardeiros estratégicos, mísseis de longo alcance ou porta-aviões de ataque também marcou a psique nacional do pós-guerra.
De um lado, o pacifismo floresceu fortemente na política, decorrente do trauma do conflito que viu as duas únicas bombas atômicas usadas em guerra explodirem no Japão.
Por outro, organizações nacionalistas, a maioria de extrema direita, ganharam força.
Abe é membro da maior delas, a Nippon Kaigi (conferência do Japão), e visitou várias vezes o polêmico santuário Yasukuni.
O templo xintoísta em Tóquio homenageia 2,5 milhões de japoneses mortos em combate, inclusive mais de mil criminosos de guerra condenados.
O premiê, que passou pelo cargo de 2006 a 2007 e voltou ao poder em 2012, é a figura dominante da política japonesa.
Ainda assim, sua defesa do rearmamento ofensivo do país é duramente combatida na Dieta (o Parlamento local), e não deverá ser diferente agora.
O governo tenta se equilibrar entre as demandas. Apesar do militarismo de Abe e da necessidade de manter o arquipélago com acesso a rotas marítimas de suprimentos, no ano passado o Japão se recusou a participar de patrulhas com os americanos no estreito de Ormuz.
Os EUA queriam ajuda do aliado para pressionar o Irã, com quem quase foram à guerra no começo deste ano, e garantir o fluxo de petroleiros pela região.
O motivo: o artigo 9 veta qualquer projeção de poder fora de águas territoriais.
Ainda assim, a Marinha japonesa participa de exercícios com americanos e australianos com frequência, e sua Guarda Costeira tem operado no mar do Sul da China.
Os três países e a Índia formam uma aliança informal chamada Quad, que envolve estrategicamente as saídas chinesas para o mar -e o comércio mundial é 90% marítimo.
No fim de semana, japoneses fizeram manobras com os indianos no Oceano Índico, outra sinalização aos chineses: Pequim e Nova Déli se envolveram em uma escaramuça fronteiriça com mortos há duas semanas.
A questão econômica pesou no caso do sistema antimísseis. O Aegis Ashore custaria US$ 4,1 bilhões (R$ 22 bilhões no câmbio desta segunda, 29) ao Japão, dos quais US$ 1,6 bilhão (R$ 8,6 bilhões) já foram pagos, e o país está em recessão devido à pandemia do novo coronavírus.
Isso não obrigou, contudo, a revisão de outros projetos do plano quinquenal de defesa do Japão, lançado em 2019.
Nele, o país pretende gastar US$ 244 bilhões (R$ 1,3 trilhão). Em 2019, o Japão teve o oitavo maior orçamento militar do mundo, US$ 48,6 bilhões (R$ 262 bilhões).
EUA lideram com US$ 684,6 bilhões (R$ 3,7 trilhões), deixando a China em segundo com US$ 181,1bilhões (R$ 978 bilhões), segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.
Um dos itens mais vistosos do pacote é a dupla de navios da classe Izumo, que estão sendo adaptados para receber a versão de decolagem vertical dos avançados caças americanos F-35. O Japão encomendou 45 desses aviões, capazes de lançar mísseis de longa distância.
O programa, claro, é alvo de críticas da oposição, mas aos poucos vai tomando forma. Na semana passada foram iniciados os testes do oitavo destróier equipado com a versão naval do sistema antimíssil Aegis.
Ele só não é visto como uma opção viável para o modelo terrestre porque seriam necessários ao menos três navios em ação 24 horas por dia.
Fica bem mais barato comprar mísseis de cruzeiro de longo alcance, algo que começou a ser discretamente feito em 2017. Ou investir em mísseis balísticos, como Abe sugere.
Central para o movimento japonês é a pressão americana. Desde que Trump assumiu, em 2017, os EUA cobram maior participação de seus aliados mundo afora, para reduzir gastos militares.
A negociação do americano com Kim, ora congelada, gerou sinais de alerta tanto em Tóquio quanto em Seul -que temem um desengajamento das obrigações americanas de defender os colegas.
Até a eventual aquisição de armas nucleares, um tabu natural no Japão, foi discutida como meio de reforço de defesas.
O país concentra o maior contingente americano no exterior, 55,6 mil soldados em 23 de bases.
Trump já retirou forças da África, do Oriente Médio e, agora, da Europa.
Se parece improvável que os EUA deixem os japoneses à mercê do colosso chinês, até pela Guerra Fria 2.0 entre Washington e Pequim, Tóquio não deve pagar para ver.
“O país tem pouca alternativa senão assumir maior responsabilidade por seus interesses de longo prazo”, diz Orchard.
Internacional
Terça-feira, 23 de julho de 2024
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