Cultura
Segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Como um selo independente transformou a música pop com fofura e esquisitice

LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre graves robustos e sons metálicos, Charli XCX canta com um falsete doce, por cima de melodia e refrão grudentos como chiclete em “Vroom Vroom”. Ao mesmo tempo estranha e acessível, a faixa de quatro anos atrás trazia viradas improváveis num pop experimental.
“Às vezes soamos bonito, às vezes ficamos agressivos”, disse a cantora britânica na época do lançamento da faixa. “Vroom Vroom” levou a um público mais amplo uma estética que já vinha sendo desenvolvida havia alguns anos pela gravadora PC Music em Londres – e viria a influenciar de forma irreversível a música pop.
“Aquilo veio de maneira impactante, tudo de uma vez – coisa de outro mundo”, diz Rodrigo Gorky, um dos produtores mais requisitados do pop nacional, mais conhecido pelos hits de Pabllo Vittar. “O impacto foi ver que estavam fazendo uma coisa muito diferente e que podia dar muito certo ou totalmente errado.”
Em maio, Charli XCX lançou “How I’m Feeling Now”, álbum caseiro feito na quarentena que só aumentou o apelo da cantora diante da crítica e também do público. Charli – que seria atração do Lollapalooza Brasil, adiado devido à pandemia – já havia estourado entre 2017 e 2018, com “Boys” e “1999”, hits obrigatórios em qualquer pista de dança nos últimos anos.
No disco “Charli”, do ano passado, ela se estabeleceu como uma força do pop, passeando por sonoridades do mainstream em duetos com Lizzo, Haim e Sky Ferreira. Mas há muita experimentação entre o “fofo e agressivo” da cantora, que em “How I’m Feeling Now” retorna com mais contundência àquela sonoridade esquisita de “Vroom Vroom”.
O diretor artístico por trás do disco é A. G. Cook, que criou há sete anos o PC Music. O selo, independente até hoje, surgiu para, segundo o fundador, “gravar gente que normalmente não faz música como se eles estivessem numa grande gravadora”.
Na prática, os artistas da PC Music – entre eles Hannah Diamond e os produtores Danny L Harle e Sophie – elevavam a novos patamares a extravagância e o apelo sintético do pop. Como se o pop eletrônico fosse desconstruído e tivesse seus elementos desenvolvidos até soarem exagerados e, em alguns momentos, caricaturizados.
A estratégia acabou sendo vista como uma crítica irônica ao pop formulaico e ultra-produzido das grandes gravadoras. Hannah Diamond, por exemplo, se apresentava como uma cantora pop típica dos anos 2000, abusando do cor-de-rosa e de uma fofura adolescente que parecia feita para quem consumia a revista Capricho 15 anos atrás.
De certa forma, o estilo do selo surgiu como grande piada, em que os próprios artistas se diziam o futuro do pop.
“A PC Music até hoje não é entendida”, diz Gorky. “É uma piada interna de meia dúzia de pessoas, e um monte de gente começou a comprar a ideia – o que não é um problema. É mais como um movimento, mas levado de um jeito despretensioso. Por mais que as declarações tivessem uma pretensão, sempre senti que era mais pela zoeira do que uma ideia de mudar o mundo.”
A gravadora pode não ter mudado o mundo, mas transformou o pop. A produtora britânica Sophie, que teve seu disco “Oil of Every Pearl’s Un-Insides”, de 2018, indicado ao Grammy, já trabalhou com Lady Gaga, Rihanna e o rapper Vince Staples. Mas, antes de ser conhecida, já havia trabalhado com Madonna no single “Bitch I’m Madonna”, parceria com Nicki Minaj de 2015 que levou parte da estética da PC Music ao mainstream.
Quem levou Madonna a Sophie, diz Gorky, foi o produtor Diplo, com quem ele já trabalhou algumas vezes. Na época, a música do selo britânico virou febre entre fãs de música pop nas redes sociais.
Além de uma identidade visual, o selo tinha como objetivo produzir música com características semelhantes, com artistas produzindo uns aos outros, contribuindo para a criação desse pop inovador.
“Tudo é manipulado, sintético. Nada orgânico”, diz Gorky. “Os sons são mexidos, os vocais são milimetricamente manipulados, perfeccionistas – de um jeito duro até, como se fosse um robozinho. E os sons são estranhos, que você não está acostumado a ouvir.”
Criando pontes mais criativas com a música eletrônica de pista – o house e o techno -, a estética da PC Music pode remeter a sons de batidas numa panela e soar até apocalíptica no auge de sua esquisitice. Uma das características dessa música é também o caos de informação, própria da era da internet, com viradas de andamento e variação imensa de timbres.
Nisso, a PC Music se aproxima do k-pop, o gênero sul-coreano que mistura quatro, cinco ou mais estilos diferentes em uma mesma música. Em paralelo, outros artistas também vêm desenvolvendo o conceito, do “pop millennial” da japonesa Rina Sawayama ao caos de pop doce, heavy metal e hip-hop do duo americano 100 Gecs.
O nome do selo, adequado à sonoridade, transbordou do seu propósito e batizou um subgênero do pop. Hoje, PC Music é nome de um som – e não só de uma gravadora.
O produtor paraibano Gabriel Diniz, do duo de música eletrônica Cyberkills, prefere chamar o estilo de hyperpop. “É porque mistura tudo – bubblegum bass, trance, house, como se fosse uma caricatura da música pop”, ele diz. “Por isso que as vozes são bem agudas, tem uns efeitos extravagantes. A gente pega um pouco disso, mas tentamos transformar e adaptar às nossas raízes.”
Ao lado do paulista Rodrigo Oliveira, Diniz ganhou notoriedade produzindo remixes com características de PC Music de músicas pop brasileiras de estrelas como Pabllo Vittar. Eles se conheceram no Twitter, nunca se viram, mas já tocam em festas online para cerca de 3.000 pessoas.
De certa forma, a própria origem do Cyberkills tem a ver com o universo da PC Music – de personagens caricatos que existem só na internet. “Numa festa, talvez não tivessem 300 pessoas que ouvissem. Mas, na internet, você pode reunir milhares”, diz. “Somos uma dupla que produz pela internet e vivemos nesse universo paralelo.”
O Cyberkills já produz músicas próprias, enquanto outros artistas fazem festas e criam músicas influenciadas pela PC Music – como a drag queen Mia Badgyal. Mas a artista brasileira mais ligada ao estilo é mesmo Pabllo Vittar.
Gorky conheceu Charli XCX num festival na Noruega, em 2015. Anos depois, a britânica chamou Pabllo para cantar em seu disco, e ela própria acabou cantando no último álbum da drag.
E, mesmo sem estar escancarada, a influência desse pop máximo está na obra da brasileira. “Tentamos incorporar de um jeito mais natural. Usamos barulhos que normalmente não usaríamos. A faixa ‘Ponte Perra’, do último disco da Pabllo, é a nossa tentativa de fazer isso que o pessoal da PC Music faz, mas trazendo para o mundo da Pabllo.”
Da mesma forma que fez Pabllo, ao absorver tanto o pop internacional quanto o brega regional, a influência da PC Music já se alastrou.
“Aquela PC Music de 2014 e 2015 já deu uma saturada, mas as influências estão presentes. Não tem como sair”, diz Diniz. “E aqui no Brasil estamos misturando com outras coisas. O hyperpop está em evolução, desconstrução, e acredito que ainda vai ter muita longevidade.”