GUSTAVO FIORATTI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No pequeno palco do Teatro Ágora, no centro de São Paulo, o ator e diretor Celso Frateschi recebeu há uma semana uma equipe de filmagem. Ao final da apresentação online de “Diana”, peça de sua autoria sobre um homem que se apaixona por uma escultura no largo do Arouche, ele disse acreditar que o teatro está sendo reinventado durante a pandemia do novo coronavírus.
Em meio à quarentena, com todas as salas do país fechadas por causa do isolamento social, o teatro teve que que se adaptar a uma nova realidade midiática -ao vídeo, que, na verdade, não é uma opção tão nova assim. Foram dois os resultados imediatos.
O primeiro, e mais óbvio, é que o espectador tem, em sua casa e via internet, acesso a um cardápio mais amplo e diverso de apresentações.
O segundo é que o trabalho dos dramaturgos e dos autores vem ganhando mais relevância nestes tempos.
Como Frateschi, outros escritores foram explorando formas de criar e de abastecer uma nova rede das artes cênicas. Sem precisar pensar em aluguel de espaços, em cenários complexos ou em sistemas de iluminação caros, as peças surgidas durante a pandemia passaram a se sustentar na ideia e na dramaturgia.
Acordos entre amigos bastam para levar uma produção muitas vezes caseira a estrear nas plataformas digitais. Às vezes, apenas um telefonema ou uma troca de mensagens são o suficiente para selar um acordo, e, assim, dar o pontapé que vai se desdobrando em lives, contatos e contratos entre intérpretes, autores e outros profissionais.
Foi o caso do festival virtual #ficaemcasacomsesc, por exemplo, que já deixou disponível seis peças. Entre elas, “O Homem do Caminho”, de Plínio Marcos, com interpretação de Sérgio Mamberti. O espetáculo é o penúltimo texto do autor de “Dois Perdidos Numa Noite Suja” para o teatro, e fala sobre um homem errante que tem por objetivo passar por 50 cidades.
A mesma série, que está disponível no YouTube, conta com “Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens”, de Jé Oliveira, autor integrante do Coletivo Negro -trabalho feito em um momento em que a temática racial se torna um dos eixos mais fortes da dramaturgia nacional. O texto foi publicado há pouco na Coleção Teatro Contemporâneo, lançada pela editora Javali.
Segundo Emerson Pirola, um dos organizadores do programa do Sesc, a experiência das lives reforça a importância da dramaturgia nacional. Mas os formatos ainda estão sendo estudados e testados, já que a experiência do teatro filmado, considerando o que foi feito antes da pandemia, ainda é embrionária -e, segundo alguns artistas, não pode nem ser chamada de teatro, que seria uma arte do encontro por excelência.
Pirola aposta na evolução de um modelo que deve permanecer no cenário teatral depois que a pandemia do coronavírus passar. “A gente tem certeza de que isso vai estar presente daqui para frente. E esses formatos possibilitarão que as plateias se ampliem. Quem estiver em Curitiba poderá assistir a algo que está sendo feito em São Paulo”, exemplifica.
Também surgiu no meio da quarentena o projeto Rede de Leituras, que conta com uma lista de autores brasileiros ou estrangeiros que vivem no país, entre eles Mauro Baptista Védia, Juliana Araripe, Otavio Martins, Clovys Torres, Leo Cortez, Marcelo Várzea, Noemi Marinho, Michelle Ferreira e Vinicius Calderoni.
A proposta abre mão de projetos cenográficos muito elaborados, de sistemas complexos de luz e de outros elementos mais ligados às tarefas do diretor. Um dos objetivos da rede, organizada por Marcello Airoldi a Thiago Manezi, é valorizar o texto e abrir espaço para novos autores no teatro contemporâneo.
Na opinião de Airoldi, surge desse circuito um substancioso material para ser analisado mais para frente. “O que os textos têm em comum é o fortalecimento de um debate sobre a nova dramaturgia e sobre esse período que estamos vivendo”, conta.
São mais de 140 artistas envolvidos no projeto, numa programação que segue até julho. “As temáticas são diversas, mas há um objetivo comum, que é fomentar a relação com um público ligado aos artistas via redes sociais.”
Colocada em prática agora, a ideia de Airoldi é antiga e nasceu há cerca de dez anos, quando ele estava viajando em turnê com dois monólogos por estados brasileiros.
“Nessas viagens, uma das coisas mais interessantes, além da apresentação, era o encontro com a diversidade das pessoas e dos pensamentos sobre teatro”, diz.
“A gente cogitou criar encontros virtuais com esses grupos que tínhamos conhecido. Na época, as plataformas ainda não eram tão eficientes, havia muito atraso entre as conversas, então deixamos de lado a ideia. Com a pandemia da Covid-19, ela pôde ser retomada agora”, completou.
Nesta semana, o projeto vai apresentar “O Retorno do Jaguaretê”, de Mauro Baptista Védia, e, no mês que vem, “Que Tal Nós Dois?”, de Juliana Araripe e Otavio Martins, que é encenado por Martins e pela atriz Carolina Ferraz.
Essa mesma dupla criou um outro projeto, no qual passaram a procurar textos para dois intérpretes logo no início da pandemia e a fazer exibições, sempre às quartas, no Instagram de Ferraz.
Juntos, já leram “Buenos Aires”, de Alex Gruli, e “Pandemônio”, do autor de novelas Alessandro Marson. O autor criou seu texto como reflexo do período transformado pelo coronavírus. A peste, no espetáculo, já passou, mas moldou uma sociedade apavorada e presa a uma distopia.
Ao lado desses projetos mais robustos, a criação independente também vem sendo influenciada. Todas as terças, por exemplo, a atriz Cléo de Paris, integrante do grupo Os Satyros, apresenta uma concepção própria chamada “Desamparos”, com direção de Fábio Penna, em sua página no Instagram.
Essa valorização dos autores e dramaturgos vai moldando, assim, uma nova concepção de teatro e criando uma rede, na qual atores passam também a fazer suas indicações depois das apresentações. Desse jeito, o espectador pode ir montando o seu próprio quadro e o seu cardápio de quais peças ver. Em casa.
Cultura
Segunda-feira, 1 de julho de 2024
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