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Quinta-feira, 25 de abril de 2024

Um fenômeno mineiro: Há 26 anos, a primeira escola de gestão do país

Entrevista com o gerente nacional de cultura empreendedora do Sebrae, Gustavo Cezário discute como combinar o pessoal com o digital na gestão empreendedora e nos relacionamentos humanos. Publicada originalmente na Revista Abrasel.

Foi em 1994 que Stefan Salej, então superintendente do Sebrae de Minas Gerais, resolveu criar em Belo Horizonte a primeira escola brasileira voltada exclusivamente à formação de jovens empreendedores. Passaram-se 19 anos até que o Sebrae nacional incluísse, no seu organograma, uma unidade voltada à disseminação do ensino escolar de empreendedorismo.

Posteriormente, em janeiro de 2018, o Sebrae de São Paulo fundou a sua Escola Superior de Empreendedorismo (ESE). Passou-se um quarto de século (desde o surgimento dessa primeira escola de gestão empreendedora do Brasil) para que a ideia de Salej começasse a engrenar nacionalmente. Nesse meio tempo, várias superintendências estaduais do sistema Sebrae montaram suas instituições de ensino técnico do empreendedorismo.

Nos Estados Unidos, que são um país um século mais jovem do que o Brasil, a educação empreendedora iniciou-se em 1927, na Universidade de Michigan. Salej montou a Escola Técnica de Formação Gerencial de Belo Horizonte (EFG-BH) seguindo o modelo das internacionalmente admiradas instituições austríacas de ensino. A cultura empreendedora enraizou-se em toda a Europa Ocidental desde a Idade Média Central, no século XII, com as corporações de ofício. Por meio delas, os mestres transmitiam seus conhecimentos aos aprendizes de pedreiros, carpinteiros ou padeiro.

Essas instituições medievais sobrevieram e evoluíram nos últimos nove séculos. Existem até hoje, como conta o economista Claudio de Moura Castro, um dos mais destacados especialistas brasileiros na área da educação, conceituado internacionalmente.

Disse o economista à Bares & Restaurantes: “As corporações hoje pegam o menino com 16 anos, e eles trabalham com o mestre. Eles recebem um mestre. E vai se mudando de mestre. Passa-se um ano, dois anos com um mestre, um ano dois anos com outro. Tradicionalmente, eram sete anos. Atualmente, são de três para quatro”.
A escolha da Áustria como referência para a implantação da EFG-BH decorreu de um estudo realizado por Moura Castro, atendendo à solicitação do diretor superintende do Sebrae Minas. Prospectou- -se, então, qual seria o país europeu em que, no meio empresarial predominavam as empresas de menor porte, isto é, as micro, pequenas e médias. Outro pré-requisito para a escolha do país é que, nele, as pequenas empresas fossem longevas, com baixo índice de mortalidade.

Nos estudos concluiu-se que o modelo da EFG-BH deveria ser o da Escola Bilíngue de Gerenciamento de Klagenfurt (na época, já somava 200 anos de experiência no ensino profissionalizante). O secretário de Educação de Minas Gerais era, então, o fundador e sócio da rede de ensino Pitágoras, Walfrido dos Mares Guia. Foram os professores dessa rede que elaboraram os ajustes no modelo da escola austríaca, com vistas a adaptá-lo à cultura brasileira. No dia 2 de fevereiro de 1944, inaugurava-se a hoje denominada Escola Sebrae de Formação Gerencial.

O que geralmente motiva os que buscam a formação empreendedora?
É a realização de um sonho, por meio de uma oportunidade criada pela pessoa que quer transformar a si mesma, e, em muitos casos, o seu entorno. O econômico está presente no social, e vice-versa. Valho-me do exemplo do meu pai, que é médico. Ele atende aqueles que precisam, mesmo quando é o caso de alguém que não pode pagar. O bem que ele faz à comunidade é o mesmo do pai de um colega meu, que tem uma indústria, na qual estão empregadas umas tantas dezenas de pessoas. As duas atividades – a do médico e a do industrial – contêm um enorme valor social. E são, também, atividades econômicas, que viabilizam a segurança financeira do médico ou do industrial, e, em ambas as situações, propiciam valores positivos para o bem de uma coletividade.

E por que é importante se ter uma educação empreendedora, mesmo os que não intencionam abrir uma loja, um salão de beleza ou um bar?
Qualquer um tem de organizar a sua vida. É o caso do meu pai, que precisa todos os dias manter em ordem o seu consultório, os seus contatos, os boletos a pagar, a comunicação com o contador, a agenda, os relacionamentos, as fichas dos pacientes, e assim por diante. Isso vale para um empregado que trabalha no setor privado, para o funcionário público, os profissionais liberais ou até mesmo para uma diarista, que negocia a remuneração e a jornada com o empregador. Cada um de nós tem de, pelo menos, empreender o cotidiano das nossas vidas, tornando-as mais simples e agradáveis.

Vocês fazem essa distinção entre o objetivo pessoal e o profissional?
A gente trabalha no Sebrae com dois perfis de educação. Um é o da educação formal, que se dá a partir da escola, com vistas a se disseminar uma cultura empreendedora, que, como já foi dito, ajuda a organizar a vida das pessoas. Para os que optam pelo projeto de um futuro negócio, oferecemos o conhecimento necessário para esse projeto seja concebido e conduzido da melhor maneira possível. O jovem saberá, de antemão, que ele terá de percorrer a estrada do aprendizado que se renova no curso de toda a sua vida, que é o do denominado ‘long life learn’ (o aprendizado ao longo da vida). E aí está presente o Sebrae, que se sustenta em três pilares: foco na gestão, principalmente das pequenas e médias empresas, compreendendo todos os aspectos das ‘hard skills’ (habilidades técnicas), isto é, planejamento, finanças, marketing, indicadores de resultados, e assim por diante. Há o aspecto de se conduzir a gestão da forma mais simples possível, desburocratizando-a. E há, ainda, esse atendimento aos que, continuadamente, buscam a renovação de uma aprendizagem necessária às várias circunstâncias de vida. Aí entram as ‘soft skills’, que são as habilidades comportamentais, as competências subjetivas.

De onde vem essa demanda pelo desenvolvimento das habilidades comportamentais?
Os aspectos socioemocionais ganharam muita relevância neste novo mundo cada vez mais complexo, que está vindo, que é o da quarta revolução industrial (a era 4.0), das tecnologias da robótica, inteligência artificial, dos avanços na biotecnologia, com elevados saltos de produtividade. As resoluções tradicionais já não dão conta, inteiramente, das demandas desse novo tempo. A escola é o espaço da mudança real. É também o espaço dos relacionamentos, do fortalecimento dos elos comunitários, a começar pelas relações interpessoais entre os alunos, tendo como um guia o professor ou a professora.

Qual o lugar do professor neste novo mundo em que vivemos?
As professoras e os professores passam a ser, cada vez mais, ativadores das competências gerais e das conexões, inclusive as digitais, sendo roteiristas para os estudantes, orientando-os no uso das plataformas de compartilhamento de vídeos. São também um elo comunitário, dialogando com as famílias. Tornaram-se, hoje, personagens ainda mais importantes. Acabou-se a prática tradicional daquele professor que passava horas escrevendo no quadro, e os alunos copiando em não sei quantas páginas do caderno, e, depois, a sala inteira consumia um tempão de decorebas que, poucos dias depois, caiam no esquecimento.

Dois fatos recentes impactaram os rumos da educação brasileira. O prosseguimento da implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que serve de referência para a elaboração, em todo o país, dos currículos da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio. E a pandemia, que acabou abrindo espaço para o uso emergencial da aprendizagem remota, pela internet. Qual é sua avaliação sobre essas duas ocorrências?
Houve uma antecipação da cultura digital muito forte. Os canais digitais foram bombardeados pela aprendizagem remota, com vídeos/aulas disponibilizadas nas redes sociais e as orientações on-line para o uso de livros didáticos, entre outras iniciativas. Vai-se formando, assim, uma pré-disposição para o avanço do ensino a distância, o EAD, que requer uma pedagogia especial, com muita disciplina e foco por parte dos alunos, e professores dotados de boas práticas, familiarizados com as ferramentas e que se desempenhem bem diante das câmaras. O Sebrae disponibiliza mais de uma centena de cursos gratuitos, em que se oferecem certificado após o término. Esse avanço cultural do digital, como consequência da pandemia do coronavírus, se incorporará à educação empreendedora que, transversalmente, permeará a Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. A educação empreendedora nada mais é do que uma forma de se colocar em prática o que a gente chama de competências gerais da BNCC. Todas as disciplinas, sejam elas as de geografia, história ou matemática, vão sendo trabalhadas com a adição de breves conteúdos ligados ao tema do empreendedorismo. Isso faz uma ponte do conhecimento entre as matérias ensinadas na escola e a vida real, trazendo uma motivação muito maior para os alunos.

Qual é o efeito de se ligar o conhecimento teórico a exemplos da vida cotidiana do empreendedorismo?
É a redução da evasão escolar. Estabelece-se uma ponte entre o aprendizado e as aplicações práticas. Isso deixa para traz a educação tradicional, que não transmitia ao estudante a utilidade do que estavam lhe ensinando. O que se apresentava nas salas de aula não fazia sentido para ele, que buscava algo que trouxesse uma validade concreta. É o que passou a correr no âmbito da educação formal, no ambiente das escolas. Já nos cursos do Sebrae, que estão abertos ao mundo empreendedor das pequenas e médias empresas, trabalham-se questões como o planejamento dos negócios, a criatividade, a inovação e a resolução de problemas.
A incultura empreendedora leva a que, diante de qualquer situação adversa, um imenso número de pequenos e médios estabelecimentos em poucos dias se veja em situação falimentar.
Aí você está fazendo uma clara menção ao fluxo de caixa. Já nos primeiros dias da quarentena, em meia semana, bateu o desespero no Basil de ponta a ponta. Será que a pandemia funcionará como um despertar para a necessidade de se adotarem alguns instrumentos de gestão? Será que trará novas formas de poupança, do estabelecimento de metas, da rotina pela busca de informações, do hábito de uma reflexão sobre como se sobreviver em momentos assim? Acho que estão disponíveis as condições institucionais para que haja uma evolução cultural, por meio do acesso que já se oferece à educação empreendedora. Uma educação formal, nas escolas, e voltada à gestão, nos cursos do Sebrae – os presenciais ou a distância.

O que é necessário corrigir, no ambiente brasileiro, para sermos mais proativos e criativos?
Temos de desenvolver no empreendedorismo e na vida a cultura do erro. Não se sabe por que razão disseminou-se entre nós a obsessão por não errar. A gente não foi treinada para o erro. Aceitamos só a nota escolar bonita, acima de 90, e o pressuposto de que não se pode errar nunca. É salutar que haja erros frequentes, de modo que possamos aprender rapidamente, corrigindo-os logo. Às vezes, a pessoa não abre a boca, com receio de falar algo errado. Isso em nada contribui para o processo inovador, criativo.
Neste início da era da tecnologia digital 4.0, os ciclos se encurtaram, o conhecimento do que se aprendeu às vezes se renova em uma semana, ou até em 24 horas. Já não se escolhem as profissões pensando que elas vão durar 30 anos, ou a vida inteira, como era antes. Temos de estudar continuadamente, a vida inteira, na base do ‘long life learn’. Nunca mais vamos parar. E há os recursos disponíveis para isso, seja no Sebrae, nas escolas dos nossos filhos, nas universidades.

E, ainda assim, isso não basta.
É verdade. Porque estamos aí em grande parte falando das assim chamadas elevadas habilidades, das ‘hard skills’. Mas isso só se completa com os relacionamentos entre os conhecidos, os amigos, os familiares, tendo como principal território as comunidades. Deve haver uma estreita ligação entre a família, a escola, a comunidade. Esses três elementos já formam, por si só, o campo favorável ao espraiamento da cultura empreendedora, por meio dos ‘soft skills’, das competências socioemocionais. A tecnologia passa a caminhar de mãos dadas com a inteligência emocional.
Os alunos é que são os protagonistas, ocupando o centro do processo de ensino e aprendizagem. O educador é um facilitador, ocupando a posição de mentor e curador. Isso transborda para conversas em família, dentro de casa. O que enriquece uma casa é a conversa entre pais e filhos, que ampliam o vocabulário, influenciando no cognitivo (processo mental de percepção, memória e raciocínio). É verdade que tais hábitos são muito mais comuns nas famílias de maior renda, e pouco praticado nos ambientes pobres. Mas a escada da ascensão socioeconômica é a educação. E a boa educação se completa com os ingredientes da educação empreendedora, porque liga o mundo formal à vida real.

Mas quando se fala em empreendedorismo, o que se constata é que, em nosso país, há muita ideia pré-concebida, muito pré-conceito.
Ainda há, sim. É comum que se entenda o empreendedorismo como um meio de se abrir um negócio ou, então, como uma forma de ‘pejotização’ (os empregados serem contratados por meio da pessoa jurídica que eles constituíram, como a de um microempreendedor individual, que seria uma forma de se burlarem os direitos trabalhistas). O que estamos tratando é da educação empreendedora, que confere mais autoestima e autonomia às pessoas, até mesmo na gestão de sua vida cotidiana. A expansão da cultura empreendedora vai desatando esses nós mentais, impulsionando a sociedade para novas demandas, com as escolas oferecendo educação em tempo integral, tão corriqueiras nas sociedades socioeconomicamente mais desenvolvidas. Essa demanda vai florescendo entre os mais jovens. Eles buscam conhecimento. Já não querem ver a televisão, mas o YouTube. Há um pensamento contrário ao empreendedorismo, que era muito comum de se ouvir, inclusive em uma parcela dos professores, que vem agora sendo naturalmente erodido, segundo o qual empreendedorismo remete ao capitalismo, o capitalismo remete ao lucro, e o lucro remete à exploração, daí por que esse tema não poderia ser levado para dentro das salas de aula.

Fonte: Portal Sebrae