Cultura
Quinta-feira, 25 de julho de 2024

Otavio Yazbek escreve sobre o silêncio ruidoso de Rachel Cusk

“Faye quase não fala, quase não analisa as coisas: ela encontra pessoas, conhecidas ou não, e, nas conversas, às vezes aparece o que a gente sabe dela. Os diálogos não são bem diálogos”

Há alguns anos, quando ainda se viajava e se podia entrar em livrarias aleatórias nas viagens, deparei-me com uma trilogia de uma autora de que nunca ouvira falar, chamada Rachel Cusk. Reconheço, comprei mais pela boniteza das capas e por causa de uns cartõezinhos que os funcionários da livraria colocavam, com comentários. Já peguei tudo de uma vez a despeito da péssima administração de risco embutida nesse tipo de ato.

Os três livros, na verdade, tornaram-se um sucesso imenso e, depois de um tempo, foram publicados no Brasil, naquelas edições caprichadas da Todavia, com os nomes de Esboço, Trânsito e Mérito. O sucesso, aliás, é merecido – os livros são originais do ponto de vista formal e, ao mesmo tempo, interessantíssimos.

Todos têm a mesma personagem central, uma escritora chamada Faye. Em Esboço, ela vai para a Grécia, dar aulas em um curso de escrita. Em Trânsito, recém separada, ela reforma a casa em que morará com os filhos em Londres. Em Mérito, já casada outra vez, ela vai para um congresso literário, aparentemente em Portugal (mas talvez em algum outro país de língua latina).

E os três livros têm o mesmo estilo. Faye quase não fala, quase não analisa as coisas: ela encontra pessoas, conhecidas ou não, e, nas conversas, às vezes aparece o que a gente sabe dela. Uma coisa meio esquisita é que os diálogos não são bem diálogos, eles são a narração do que se falava pela autora, que também embute na sua descrição uma ou outra análise. Parece chato, eu sei, mas o resultado final é muito bom por uma série de motivos.

Primeiro porque as estórias e reflexões dos variados interlocutores de Faye são bem ricas, variadas, e já valem muito a pena. E tem muita coisa profunda: a cena do jantar entre amigos no final de Trânsito, por exemplo, é de fazer você parar e ficar pensando, não querer começar nenhuma outra coisa logo depois – e, pra mim, já isso é uma dificuldade, engato um livro em outro como um daqueles personagens fumantes de filme noir. Aqui se impõe uma parada, uma mastigada adicional.

Mas os livros vão além disso. Olhando com cuidado a gente vê que cada um tem um mote próprio, um tema comum. E, ao lado disso, tem a grande sacada da constituição da personagem Faye a partir das conversas com aqueles terceiros e dos contextos em que essas conversas se travam. Li em algum lugar que isso está muito ligado às polêmicas que a autora gerou quando escreveu dois livros de memórias um pouco mais honestos do que se esperava. Essa trilogia seria, assim, uma espécie de resposta àquele excesso de exposição. Mas o ponto é que, num jogo muito legal, no silêncio, no narcisismo e nos auto enganos dos outros (que tanto falam), ela aos trancos e barrancos se desenha. Genial.

O problema dessa fórmula é que ela não pode ser repetida sem virar pastiche. Fora isso, só espero que, depois do sucesso desses livros, isso não vire moda pra outros autores também. Porque aqui funcionou muito bem, mas em mãos menos hábeis e menos maduras pode ser uma besteirada sem fim.

Fonte: Valor Pipeline