
Charlie Kaufman encantou o público da Sala São Paulo ao arriscar um pequeno discurso em português durante a abertura da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na semana passada. O roteirista americano, que está na cidade para receber o prêmio Leon Cakoff e dar uma masterclass nesta quarta (22), escolheu cada palavra com bastante cuidado.
No palco para apresentar seu novo curta, “Como Fotografar um Fantasma”, que terá outras sessões no evento, ele lembrava os seus personagens. Sua voz tremulava e a cabeça parecia cheia de preocupações.
Responsável pelo aclamado roteiro de “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, de 2003, houve um tempo em que ele vendia suas ideias com mais facilidade. “Não acho que as pessoas que hoje comandam grandes estúdios, ou seja lá o que essas megacorporações são, se preocupam com filmes ou com suas linguagens. Elas querem monetizar tudo. Os filmes viraram produtos como quaisquer outros”, diz à reportagem.
Apesar do aparelho apresentado pelo longa de Michel Gondry, que apagava memórias dolorosas com certa praticidade, a trajetória de Kaufman resiste com alguma dificuldade. Sua matéria-prima sempre foram os problemas de comunicação -geralmente ligados à arte.
Em 1999, um titereiro fracassado abandona as marionetes para manipular a mente de um ator famoso. Mesmo que o controle dure poucos minutos, o truque vira febre entre pessoas que anseiam o estrelato. “Quero Ser John Malkovich”, de Spike Jonze, foi o primeiro projeto pelo qual o roteirista foi creditado. O filme o lançou como promessa do novo milênio, e Hollywood acolhia as suas narrativas mirabolantes. O artista se consagrava enquanto sinônimo de tramas inventivas.
Com o tempo, seus projetos ficaram mais pessoais. Em 2002, Kaufman e Jonze se apropriaram de uma crise criativa vivida pelo roteirista, que emprestou seu nome para “Adaptação”. Na pele de Nicolas Cage, ele deu à luz a jornada de um homem que tenta adaptar um romance verídico da jornalista Susan Orlean. Recluso e frustrado com o trabalho, o protagonista se aproxima da escritora para entender melhor o livro.
O desafio preparou Kaufman para trabalhar com a poeta Eva H.D., com quem concebeu “Como Fotografar um Fantasma” duas décadas depois. Longe dos grandes orçamentos, a produção vai às ruas de Atenas para retratar dois fantasmas que acabaram de morrer. O curta reúne memórias da dupla e arquivos que remetem a guerras e cenas violentas da história. A relação conversa com as profissões dos espectros.
O primeiro é uma fotógrafa, vivida por Jessie Buckley. O outro, um tradutor, interpretado pelo libanês Josef Akiki. Seja pela captura de imagens, seja pelo encontro entre línguas diferentes, os mortos tentam se conectar com o mundo que não os enxerga -algo que lembra os bastidores da construção do filme.
Sem garantia de ampla distribuição comercial, o curta estreou em agosto, no Festival de Veneza. Durante o tapete vermelho, a equipe mostrou solidariedade à população palestina. Nas mãos da poeta, um cartaz classificava a população global como “testemunha de um genocídio”.
Num momento em que artistas hollywoodianos parecem conter suas críticas contra Donald Trump e o cessar-fogo entre Israel e o Hamas, negociado pelo presidente americano, ameaça se desfazer, H.D. não se surpreende.
“Esse tipo de resistência nunca esteve presente no ‘mainstream’. Se pensarmos na história de Hollywood, muitos filmes são feitos para deixar a burguesia confortável. Só assim, talvez, ela pode abraçar algum tipo de revolução. As pessoas que possuem dinheiro estão apavoradas com a ideia de criticar o atual governo, mas não são muito diferentes dos pais fundadores”, diz a poeta. Ela participa do filme como narradora e reflete sobre a imigração e o mal-estar que percorre o globo.
“Tem sido um desafio acompanhar a escrita de Eva. Foi interessante descobrir como tornar essa ideia em filme. A narrativa talvez tenha fracassado, um pouco, pela forma como foi apresentada. Mas sinto que ela é simples, na superfície, justamente para nos libertar para a exploração da linguagem e de Atenas. Nosso curta anterior ‘Jackals & Fireflies’ [projeto de 2023 filmado pelo celular] já se baseava num poema dela. Nossa missão tem sido criar algo poético”, afirma Kaufman, que dirigiu pela segunda vez um roteiro de H.D.
A primeira colaboração entre os dois aconteceu em 2020, quando ele incluiu um poema da autora em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, lançado pela Netflix. O longa ainda foi o primeiro trabalho dele e Buckley juntos, quando a atriz incorporou os transtornos de uma mulher prestes a conhecer os pais do namorado. Foi o último que ele dirigiu até o momento, e a recepção morna dividiu o público e a crítica.
Não foi muito diferente de sua estreia na direção, em 2008, apesar de hoje ser elogiado por um grupo de fãs. “Sinédoque Nova York”, conto ambicioso sobre um dramaturgo, papel de Philip Seymour Hoffman, que decide desafiar a própria mortalidade, exigiu a construção de cenários gigantescos e sofreu muito nas bilheterias.
Sete anos separaram a bomba financeira de sua animação adulta “Anomalisa”, que integra sessões da Mostra junto de “Fantasma”. O stop-motion segue um deprimido palestrante motivacional. Sua capacidade de ajudar os outros deixou a vida monótona, e todos ao redor possuem a mesma aparência. Tudo muda quando ele se apaixona por Lisa, o único rosto que se destaca na multidão.
O desenho foi indicado a um Oscar, mas não fez sucesso entre os maiores de idade. As crises de identidade, com direito a membros que se soltam do protagonista, ou o sexo entre pessoas feitas de massinha podem ter afastado o público-alvo.
“Ouvi dizer que existe uma regra, em streamings, que define que tudo que acontece deve ser mencionado pelos personagens. Porque ninguém está prestando atenção! Todos estão nos celulares ou fazendo inúmeras outras coisas. Fora os executivos que insistem que os personagens sejam todos muito agradáveis. Isso não me interessa, é pura sedução. É como se a falta de verdade e complexidade fosse um pré-requisito para esses filmes”, diz Kaufman entre longas pausas, medindo cada frase.
Sua lábia pode não ser tão afiada quanto a do coach de “Anomalisa”, mas os arredores não lhe parecem tão repetitivos. Ao menos é o que o deixa orgulhoso ao produzir curtas-metragens. “O curta tira uma série de equações e traz uma liberdade criativa que normalmente não existe. O único problema é que eles não dão dinheiro.”
Hoje, ele tenta tirar do papel “Later the War”, que começou a ser rodado em maio. O longa, que segue um homem capaz de tornar sonhos em realidade, teve a produção abruptamente interrompida. Fora questões financeiras, Kaufman não recebeu outras justificativas, mas a esperança é de que o projeto seja retomado.
“Não tenho nenhuma fórmula mágica para o que faço. Sinto que ao começar um novo projeto, nunca sei o que fazer. Quando aquilo realmente acontece, talvez eu tenha em mãos uma versão mais fraca do que realmente queria fazer. Mas é o tipo de coisa que me estimula.”
A autodepreciação não o impede de acreditar num pensamento de H.D., que vê na poesia a única arte que não pode ser monetizada. Quem sabe um dia os versos de Kaufman voltarão às principais prateleiras de Hollywood.
COMO FOTOGRAFAR UM FANTASMA
Quando Qua. (22), às 20h15, no Cinesesc, às 21h30, na Cinemateca Brasileira; sex. (24), às 14h, no Multiplex Playarte Marabá; seg. (27), às 12h, no Multiplex Playarte Marabá
Classificação Não informada
Elenco Jessie Buckley e Josef Akiki
Produção Estados Unidos, Grécia, 2025
Direção Charlie Kaufman
MASTERCLASS COM CHARLIE KAUFMAN E EVA H.D.
Quando Qua. (22), às 20h30
Onde Cinemateca Brasileira – Largo Sen. Raul Cardoso, 207, SP
Fonte: FolhaPress