
Perto do aniversário de dez anos da decisão histórica de abrir as fronteiras da Alemanha a refugiados, Angela Merkel declarou que seu ato provocou o fortalecimento da AfD, o partido de extrema direita do país. Em entrevista à emissora pública ARD, que estreia documentário sobre o tema nesta segunda-feira (25), a ex-premiê declarou que não se arrepende. “Isso certamente fortaleceu a AfD. Mas seria motivo para eu não tomar uma decisão que considero importante, correta, sensata e humana?”
Em 2015, em plena crise de refugiados na Europa, Merkel fez um discurso marcado pela frase “Wir schaffen das” (“Vamos conseguir”) ao sinalizar que abriria as fronteiras do país a milhares de refugiados no auge da crise humanitária provocada pela guerra da Síria. A opção de expulsá-los estava fora de cogitação, ela afirmou ao programa.
Merkel acredita que, naquele momento, muitas pessoas na Alemanha não queriam que seus valores sobre a dignidade humana “fossem traídos”. “Elas estavam felizes e apoiaram os refugiados.” Quase meio milhão de estrangeiros foram admitidos com flores e garrafas de água nas estações de trem, mas a lua de mel não durou muito.
Episódios de violência provocados por imigrantes logo ganharam destaque no noticiário. Em 2016, um tunisiano, que teve seu pedido de asilo negado, roubou um caminhão e invadiu um mercado de Natal no centro de Berlim matando 13 e ferindo dezenas. O atentado foi reivindicado pelo Estado Islâmico.
Dez anos depois, a AfD, que à época era uma sigla nanica, hoje concorre em popularidade com a CDU do atual premiê, Friedrich Merz. Em alguns levantamentos, já até supera o partido do político conservador.
“Hoje sabemos claramente que não conseguimos alcançar o objetivo que ela tinha em mente à época”, declarou Merz sobre Merkel no mês passado. Números divulgados também nesta segunda apontam para o contrário. Em 2024, 64% dos admitidos em 2015 estavam empregados e 5% eram autônomos, o que deixava o quadro próximo à taxa geral da Alemanha, de 70%. Outras estatísticas, como contribuição à previdência e recebimento de benefícios sociais, também demonstram adaptação crescente ao país.
A percepção pública, no entanto, é outra. Discursos políticos imputam a imigrantes o custo crescente na área de habitação, por exemplo, mas os dados, de novo, vão em outra direção: em distritos com maior fluxo de refugiados os aluguéis sobem menos. Pesquisas mostram também que a xenofobia aumentou nas regiões que menos receberam imigrantes.
Nas eleições parlamentares de fevereiro, em que a AfD obteve a segunda maior bancada, feito inédito, Merkel ainda afastava qualquer responsabilidade sua sobre a ascensão da extrema direita e do populismo. Chegou a dizer que, ao deixar o poder em Berlim, a legenda populista ainda estava na casa de um dígito nas pesquisas.
Atentados protagonizados por solicitantes de asilo e refugiados antecederam o pleito. Merz, há poucos dias da votação, aprovou uma moção anti-imigratória no Parlamento com votos da AfD, gerando forte reação do mundo político e da opinião pública. Centenas de milhares foram às ruas contra a ascensão da extrema direita.
Nada disso arrefeceu o discurso da AfD, que amealhou quase um de cada quatro votos nas eleições e projeta estar no comando da Alemanha até o fim desta década. Alice Weidel, colíder da legenda e sua candidata a premiê, anabolizada pelo apoio de Elon Musk, Donald Trump e J.D. Vance, no ápice de sua campanha afirmou que promoveria a reimigração, eufemismo para deportação em massa.
Imigração é o tópico preferido do populismo europeu, que, de modo conveniente, oblitera temas mais complexos, como o declínio populacional e a falta de trabalhadores qualificados. Merkel vê a tendência com preocupação. “Se nos dividirmos em relação à política de refugiados e migração, teremos um grande problema, porque precisamos de uma Europa forte e unida.”
Fonte: FolhaPress