
Na data que marca a explosão em Hiroshima, a conversa que tive com um homem que escapou da morte
Entre as maravilhas de ser repórter está poder conversar com pessoas que acabam te ensinando alguma coisa. Quando uma simples entrevista vira uma lição… Muitas vezes para vida. Em 2015 aconteceu um desses momentos, quando eu encontrei com o japonês Sunao Tsuboi. Eu não tinha absolutamente nenhuma noção de como o depoimento dele iria mexer comigo. O senhor Tsuboi era um sobrevivente da bomba atômica de Hiroshima.
Eu estava preparando uma série de reportagens sobre mais um aniversário das explosões que marcaram a história: no dia 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, e 3 dias depois, em Nagasaki. Os americanos, já com o Japão de joelhos e querendo demonstrar seu poderio nuclear, lançaram as duas bombas.
Os efeitos, que só eram conhecidos em testes no deserto, foram sentidos nas duas cidades. Por pessoas. “A tragédia de qualquer guerra”, alguns podem até dizer. Mas esta era diferente: era nuclear.
A bomba, lançada numa segunda-feira pela manhã, pegou Hiroshima já acordada. Bondes circulando, gente indo para o trabalho, crianças a caminho da escola. O alvo era o centro da cidade, longe das bases militares que a cidade possuía. A ideia – segundo historiadores japoneses com quem conversei na época da reportagem – seria usar o lugar como laboratório, ver os efeitos da bomba em construções e nas vítimas.
Hiroshima é cercada de montanhas e isso ajudaria a criar um efeito de concentração da radiação. Sobreviventes dizem que, nos dias e semanas seguintes ao ataque, soldados dos Estados Unidos faziam pesquisas na região. Acreditava-se que nem grama cresceria no solo da cidade pelos próximos 80 anos.
Os sobreviventes daquele dia se recordam que tudo começou com um brilho no céu. Eram 8:15 da manhã. As cidades japonesas vinham sendo atingidas por pesadíssimos bombardeios.
Tóquio, por exemplo, teve grande destruição em março de 1945: em apenas uma noite, bombas incendiárias mataram 100 mil moradores da capital. Aviões americanos sobrevoando o país não eram novidade. Mas diferente do que se conhecia até então, a bomba de Hiroshima não explodiu ao tocar o solo: foi detonada no alto. Talvez para ampliar seus efeitos. Calor e impacto que destruíram tudo num raio de dois quilômetros. Mas primeiro veio o brilho.
O senhor Tsuboi estava em Hiroshima naquele 6 de agosto. Era um jovem de 20 anos, estudante de engenharia. O que ele me contou – e lembro não apenas das palavras, mas também do tom que ele usava, dos gestos, os sons que ele fazia com a boca ao tentar reproduzir o estrondo no momento em que o brilho no céu virou explosão.
Tsuboi estava longe do centro – numa ponte chamada Miyuki. Era o limite desse raio mais intenso. E isso iria definir quem viveria, quem morreria.
Sua memória parecia boa aos 90 anos. Recebeu a equipe naquele dia numa sala, na sede da associação dos sobreviventes da bomba de Hiroshima. Conversei com outros sobreviventes e li muitos relatos. Quem conseguiu escapar com vida naquelas duas explosões recebia o nome de “hibakusha”, sobrevivente da bomba.
Quase todos repetiam a mesma rotina ao longo da vida. Primeiro, o sentimento de sorte de ter escapado de algo tão destruidor. Depois, o medo das doenças que poderiam vir junto com a radiação. Havia ainda, para alguns, os traumas da guerra, lembranças duríssimas de perdas. E o preconceito – “quanto tempo esse homem vai durar?”, foi a pergunta que Tsuboi ouvia, fosse tentando conseguir um emprego ou na conversa que teve com os pais da namorada, que depois viria a se tornar sua esposa.
Quando a bomba explodiu, Tsuboi foi lançado ao chão, com as roupas em chamas, o corpo com graves queimaduras. O calor provocado pela bomba próximo ao epicentro chegou a 4.000°C. Ele não achava que iria sobreviver, tanto que pegou uma pedra e escreveu, enquanto sofria dores lancinantes: “Tsuboi morreu aqui”. Mas sobreviveu.
Foi resgatado por um caminhão do Exército japonês que passava recolhendo os feridos. Um gesto de boa vontade? Aqui fica a parte mais dura de seu relato. Sunao Tsuboi conseguiu perceber que o caminhão só transportava homens. E homens jovens. Fazia parte do esforço de guerra manter quem pudesse lutar vivo, daí a busca por esses sobreviventes.
Tsuboi estava muito ferido, mas de dentro do caminhão, na parte de trás do veículo, percebeu uma menina tentando subir. Ela também estava ferida, tinha dificuldades para alcançar a carroceria. Quando ele foi tentar ajudar, sentiu um soldado tomar a sua frente para dar um chute na criança, retirando qualquer chance de salvamento. Para o Exército japonês, aquela menina não era digna de salvamento.
Tsuboi não me disse a idade que ela aparentava, quais eram seus ferimentos ou o que sentiu testemunhando a cena. Não precisava. A última lembrança que ele tinha daquele dia, me contou, “era ver a menina chorando, ferida, correndo em direção à cidade de onde todos queriam escapar. Uma cidade em chamas”.
Tsuboi morreu em 2021, aos 96 anos de idade. Passou a vida enfrentando mesas de cirurgia para corrigir sequelas dos ferimentos da bomba.
Casou, teve filhos e rodou o mundo como uma voz poderosa contra as bombas nucleares. Tocava quem o interpelava com um relato cruel daquele dia. Mas era simpático, afável, sorridente. Ninguém saía igual depois de conversar com Sunao Tsuboi.
Neste 6 de agosto de 2025, a gente precisa entender uma coisa. Ninguém simplesmente “visita” Hiroshima ou Nagasaki. Ao estar nas únicas cidades do mundo que já foram alvo de bombas atômicas durante um conflito, qualquer um deixa de ser um simples turista… E se torna testemunha. Impossível não se sentir assim. Temos a chance de ver de perto como as guerras desumanizam as pessoas; entender o ataque que mudou a história do planeta; sentir o quão longe pode ir a crueldade humana.
Mas quem vai a Hiroshima ou Nagasaki pode testemunhar outra coisa: a força do ser humano em recomeçar. As duas cidades são lindas – merecem realmente ser conhecidas. Só assim, para aprender a fundo, as lições daqueles dias para que a tragédia não se repita.
Fonte: CNN