
Com o objetivo de impulsionar a construção de uma estrutura de processamento de dados para atender às big techs, o Ministério da Fazenda planeja criar um regime tributário especial que reduz a zero a alíquota dos impostos federais dos produtos comprados pelas empresas que estiverem construindo data centers no Brasil.
A medida também isenta do imposto de importação os produtos que não são produzidos no país, como os chips da Nvidia, mostra uma minuta da Política Nacional de Data Centers (PNDC) obtida pela reportagem. Essas peças são essenciais para desenvolver grandes modelos de inteligência artificial que podem mobilizar investimentos de até R$ 2 trilhões, segundo o ministro Fernando Haddad (Fazenda).
De acordo com os números apresentados pelo governo e pelo setor de data centers, a medida provisória que cria o Regime Especial de Incentivos para instalação de Data Centers no Brasil (RE-Data) deve conceder vantagens tributárias de cerca de R$ 701 bilhões para grandes empresas de tecnologia. O objetivo é gerar divisas com a exportação de serviços e estimular a economia digital do país.
Especialistas em planejamento, porém, têm dúvidas sobre se as empresas estrangeiras trarão propriedade intelectual e pesquisa para o Brasil ou se apenas irão se beneficiar de eletricidade barata e benefícios fiscais. Citam como exemplos históricos negativos a Zona Franca de Manaus e o complexo de fabricação de alumínio no Maranhão.
O texto passou pelos ministérios do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e da Fazenda, e agora está no Planalto, que avalia o melhor momento para enviar a proposta ao Congresso. Alterações ainda podem ser feitas na MP.
ENTENDA O PROJETO E AS CIFRAS
Haddad divulgou que a medida pode destravar um investimento de R$ 2 trilhões em data centers nos próximos dez anos.
Segundo três executivos do setor ouvidos pela reportagem, a conta é a seguinte: o Brasil teria capacidade de adicionar à sua rede de distribuição mais 10 gigawatts em projetos de data centers nos próximos dez anos, e a construção de infraestrutura para suportar 1 gigawatt dedicado a computação custa R$ 50 bilhões, totalizando um investimento de R$ 500 bilhões.
De acordo com estimativas setoriais, as empresas que contratam data centers precisam investir R$ 3 em equipamentos para cada R$ 1 gasto na construção. Por isso, R$ 1,5 trilhão do valor investido seriam de companhias de tecnologia estrangeiras comprando peças, principalmente importadas.
Na prática, as indústrias brasileiras constroem o prédio, o sistema elétrico e parte do sistema de refrigeração, e as big techs cuidam dos computadores e da rede. As obras só começam depois que o fornecedor de processamento de dados fecha contrato com a cliente, que costuma ser uma big tech, diz Wilson Laia, conselheiro da IDCA (Autoridade Internacional de Data Centers). “Um data center deve ser construído de acordo com a demanda e especificações do cliente.”
Hoje, a importação de chips de ponta necessários nos complexos de processamento de dados mais modernos paga 52,7% de impostos, diz o CEO da Elea Data Centers, Alessandro Lombardi. Essa barreira tributária, afirma ele, paralisou os investimentos em grandes projetos voltados à inteligência artificial.
O governo federal recolhe, hoje, imposto de importação, PIS, Cofins e IPI, que somam uma alíquota de 46,75%. A MP prevê isenção desses quatro impostos ou seja, o governo abriria mão de R$ 701 bilhões em arrecadação.
O imposto de importação não tem fim arrecadatório e está livre da exigência de compensação, de acordo com o economista Bruno Carazza. Em vista disso, o gasto tributário ficaria em R$ 401 bilhões.
MEDIDA ADIANTA EFEITO DA REFORMA TRIBUTÁRIA, DIZ FAZENDA
O assessor-especial da Fazenda Igor Marchesini, que formulou a medida, argumenta que não é preciso haver uma compensação direta desse subsídio, uma vez que a medida seria um simples adiantamento dos efeitos da reforma tributária. Isso porque a nova legislação prevê um mecanismo de reembolso da cobrança de imposto sobre imposto que ocorre quando os tributos incidem na venda do serviço.
Ainda segundo o assessor, a alíquota sobre a compra das peças seria cobrada duas vezes da gestora do data center e do cliente. “Se a gente pudesse pular para 2033, não precisava de política da Fazenda, porque a gente estaria, de fato, desonerando todo o investimento em ativos”, diz Marchesini.
Enquanto o projeto não é aprovado, só avançam no país os projetos de grandes data centers programados para zonas de processamento de exportação (ZPEs), onde já há isenção dos impostos de importação. Na segunda-feira (21), o governo publicou no Diário do Oficial da União uma medida provisória que obriga novos projetos em ZPEs a contratarem apenas energia renovável.
Além de um data center da Casa dos Ventos, construído para o TikTok e localizado na ZPE de Pecém, as americanas Optimus Technology Datacenter e RT One também escolheram locais que pleiteiam a criação de ZPEs junto ao governo federal para se instalarem no país o estado de Sergipe e o município de Maringá respectivamente.
Esse modelo concentrado em ZPEs, no entanto, pouco agrega à soberania digital do Brasil. Isso porque as empresas de serviços, como são classificados os data centers, só podem vender para outros países; ou seja, os data centers instalados em ZPEs não poderão hospedar dados gerados no Brasil portanto, não diminuirão o déficit de processamento de dados do país, que hoje está em 60% da carga digital.
“A questão da soberania digital não será equacionada [com data centers em ZPEs], mas esse é um programa de atração de investimento nacional”, diz Uallace Moreira Lima, secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Mdic.
A chegada desses data centers tem potencial de alterar o perfil da balança comercial do país, hoje deficitária em serviços, afirma o secretário.
Parte dos técnicos do governo defendeu que a MP fixasse uma fatia dos serviços para o mercado local, mas esse trecho não entrou na minuta da PNDC. O texto final apenas cita o objetivo de diminuir o atual déficit de serviços digitais no país.
O QUE DIZEM OS CRÍTICOS
Especialistas em política tecnológica e planejamento levantam dúvidas se as empresas estrangeiras conseguirão dar um impulso no desenvolvimento do país, devido ao histórico de medidas do tipo frustradas no passado.
De acordo com o coordenador da área de humanidades do C4AI (Center for Artificial Intelligence) da USP, o professor Glauco Arbix, o projeto traz riscos em quatro frentes: abastecimento de água e energia, sobrecarga na transmissão de dados e qualidade do investimento externo.
De acordo com o anteprojeto da PNDC, o governo tenta resolver as questões ambientais com condicionantes de eficiência na gestão de recursos hídricos e energéticos. Por exemplo, todos os data centers beneficiados teriam que usar energia renovável.
Por outro lado, ainda faltam mecanismos para garantir a qualidade do investimento, de acordo com Arbix.
A ideia do governo com o programa é recolher 2% dos valores importados para o FNDIT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Industrial e Tecnológico), que reúne recursos privados sob gestão do BNDES para diminuir o risco de financiamento de projetos de inovação. Como o banco estatal entra com uma parte do investimento, a empresa por trás do projeto fica menos exposta em caso de fracasso.
Para Arbix, o governo deve melhorar a supervisão da concessão de subsídios para o setor de data centers e para as startups remuneradas pelo FNDIT a fim de que o plano funcione. “É preciso acompanhar os projetos das empresas que aceitaram os incentivos.”
O especialista recorda, por exemplo, que a política de semicondutores sancionada em 2007 não teve o efeito previsto sobre o parque de tecnologia digital brasileiro. As multinacionais que vieram para a Zona Franca de Manaus, diz Arbix, limitam as suas atividades no país à montagem dos aparelhos.
Outro exemplo negativo, de acordo com o professor Ildo Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente da USP, é o complexo de fabricação de alumínio em Pará e Maranhão, que se construiu tendo como alicerce a usina hidrelétrica de Tucuruí.
“Houve muitos impactos ambientais, nenhum desenvolvimento da região da usina, poucos empregos nas indústrias, e todo valor agregado foi para o exterior com o uso do alumínio”, avalia Sauer.
Sem um plano de desenvolvimento e reindustrialização, Sauer avalia que existe o risco de o complexo de data centers seguir pelo mesmo caminho. “Vamos repetir o erro?”, questiona.
A chegada de grandes data centers ao país também tende a tensionar a rede elétrica.
Devido à enorme quantidade de placas solares instaladas principalmente no Nordeste e no norte de Minas Gerais, o Brasil tem hoje excesso de geração de eletricidade durante tardes ensolaradas, mas quando o sol se põe o ONS (Operador Nacional do Sistema) precisa acionar termelétricas movidas a gás natural, carvão e óleo diesel combustíveis poluentes para atender o consumo.
Por isso, como os data centers têm consumo constante de energia ao longo de todo o dia, o Brasil teria que expandir sua capacidade instalada de termelétricas para abastecer as novas estruturas de processamento de dados. Uma alternativa a isso seria intensificar o processamento de dados em momentos de excesso de geração de energia e reduzir durante picos de consumo, cenário improvável para um data center.
“À medida que você aumenta a demanda por renováveis de forma constante, você continua tendo necessidade de capacidade firme. Por isso, a forma em que a demanda pode ter um papel diferenciado para reduzir o excesso de energia é ter um perfil de consumo mais próximo da geração”, diz Rodrigo Borges, diretor-líder da Aurora Energy Research no Brasil.
Fonte: FolhaPress