
Texto é considerado um passo correto na direção da redução de desigualdades, mas especialistas alertam para riscos na perda de receita, desequilíbrios e eventual custo inflacionário da medida
A reforma do Imposto de Renda, que prevê isentar aqueles com renda de até R$ 5 mil a partir de 2026 e tributar os dividendos, vai na direção correta de redução das desigualdades. Por outro lado, o projeto enviado na semana passada pelo governo é alvo de críticas, e as mudanças, que já foram tentadas em governos anteriores, devem enfrentar uma série de obstáculos no Congresso.
Essa é a avaliação de especialistas sobre o projeto de lei, que propõe elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil e conceder um desconto progressivo para a renda até R$ 7 mil. Para compensar a perda de arrecadação, o texto prevê que os dividendos passem a ser tributados, garantindo uma alíquota mínima de 10% para os brasileiros mais ricos.
O objetivo do projeto é reduzir a disparidade da tributação entre as diferentes faixas de renda – segundo dados do governo, há 141,1 mil contribuintes que pagam uma alíquota média efetiva de IR de apenas 2,54% – eles representam o equivalente a 0,13% da população, que ganha mais de R$ 50 mil por mês ou R$ 600 mil por ano.
Na prática, quem ganha acima desse valor recebe boa parte de sua renda através de dividendos, que atualmente são isentos do Imposto de Renda. Com as mudanças, que preveem retenção desse imposto na fonte pelas empresas pagadoras, a alíquota média efetiva desses contribuintes passaria a ser de 10%.
Para Bernardo Motta Moreira, professor de Direito Tributário do Ibmec, as rendas mais altas de fato ficam fora da tributação no Brasil, exatamente porque sua renda é derivada dos dividendos.
“O projeto apresentado pode reduzir desigualdades. Aumentar a alíquota efetiva média dos contribuintes de alta renda para até 10% redistribui a carga tributária, tornando o sistema mais progressivo, de forma que quem tem mais, paga mais”, afirma.
O advogado tributarista Luiz Gustavo Bichara, reconhece a necessidade de uma revisão da tabela do Imposto de Renda, mas ao mesmo tempo avalia que a isenção até o limite de R$ 5 mil é exagerada.
“Para se ter ideia, um casal sem filhos em que cada um tenha rendimento mensal de R$ 5 mil figura no topo da nossa distribuição de renda, entre os 10% mais ricos”, diz. “A medida reduz a apenas 10 milhões de cidadãos a base de contribuintes do IRPF [Imposto de Renda da Pessoa Física] em uma população economicamente ativa de 100 milhões de pessoas, transformando o IR em um imposto que alcançará somente 5% da população total, algo sem precedentes em países comparáveis.”
Dividendos serão bitributados?
Outra objeção de quem se opõe ao projeto é ao fato de as empresas pagarem impostos antes da distribuição de dividendos – nesse sentido, se estes passassem a ser tributados, haveria uma espécie de bitributação, ou seja, quando o mesmo imposto é cobrado duas vezes.
Moreira, do Ibmec, explica que não há bitributação do ponto de vista jurídico.
“Bitributar é cobrar duas vezes um tributo sobre o mesmo fato gerador”, defende. “A empresa (pessoa jurídica) e o acionista (pessoa física ou jurídica) são entes separados. O IRPJ [Imposto de Renda sobre a Pessoa Jurídica] e a CSLL [Contribuição Social sobre o Lucro Líquido] incidem sobre o lucro da empresa como entidade autônoma, enquanto o imposto sobre dividendos recai sobre a renda do acionista, um evento tributável distinto”, avalia. “Assim, não há bitributação no sentido técnico, pois os contribuintes e os fatos geradores são diferentes.”
Ele lembra que a maior parte dos países da OCED (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tributa os dividendos, com alíquotas entre 10% a 30%, e também tributam o lucro das empresas. “Trata-se de um modelo de tributação progressiva, e não bitributação, porque o imposto sobre dividendos reflete a capacidade contributiva do indivíduo que recebe a renda.”
Por outro lado, o especialista reconhece que a tributação das empresas é bastante elevada no Brasil. “Elas pagam, além do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre seus lucros, gerando uma a alíquota combinada de 34%. Há quem defenda, portanto, que os dividendos são uma parcela desse lucro já tributado, e tributá-los novamente seria incidir sobre a mesma riqueza, caracterizando uma bitributação, mais no sentido econômico”, pondera.
Na avaliação de Bichara, o governo não cumpriu a promessa de nivelar a tributação das empresas com o resto do mundo antes da tributação de dividendos.
“O governo abandonou de forma ostensiva a promessa feita no primeiro ano do mandato de que a tributação dos dividendos seria acompanhada da redução da tributação sobre as pessoas jurídicas, de modo a nivelar o Brasil com o resto do mundo, promessa essa que foi repetida em abril de 2024 pelo ministro Haddad”, critica o advogado.
Impactos fiscais e monetários
Outro ponto de discórdia entre especialistas é sobre os impactos do projeto sobre a política fiscal e sobre a política monetária – a isenção do IR estimularia o consumo em um momento em que o Banco Central está elevando a taxa básica de juros, a Selic, para conter a inflação.
O governo estima que a perda de arrecadação com a isenção e descontos no IR será de R$ 25,8 bilhões, mas cálculos do economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, especialista em contas públicas, apontam que a receita que deixará de ser auferida soma R$ 34 bilhões.
Já a taxação das rendas mais altas elevaria as receitas em até R$ 29,7 bilhões, segundo Salto, insuficiente para cobrir a arrecadação menor com a isenção e descontos do IR. “Dessa maneira, haveria perda de receitas de R$ 4,3 bilhões, quando a medida fosse totalmente implementada”, apontou o economista em relatório.
O risco, diz Salto, é o projeto ser desidratado no Congresso com uma taxação menor da renda mais alta, o que poderia elevar ainda mais essa perda de receitas.
“Reforça-se a necessidade de não haver desidratação da compensação no Congresso”, afirma o relatório da Warren. “Em nossas estimativas, a “gordura” para alívios das medidas compensatórias é inexistente. Dada a incerteza envolvida nesses cálculos, nota se que a ordem de grandeza das estimativas do Executivo parece plausível, mas sem compensação integral dos custos.”
Municípios defendem compensação
Outra linha de combate contra o projeto de lei no Congresso pode vir dos estados e municípios, que afirmam que deixarão de receber recursos com o projeto.
A Confederação Nacional de Municípios (CNM) alega que os municípios perderão R$ 11,8 bilhões em receita, e que defenderá no Congresso que sejam compensados no futuro.
“Mesmo nas estimativas mais otimistas da compensação financeira anunciada pelo governo, os municípios enfrentarão perdas em sua arrecadação própria que necessitarão de compensação. É importante lembrar ainda que os municípios já enfrentam um quadro fiscal difícil. O ano de 2024 fechou com o maior déficit primário da história municipal”, afirmou em nota Paulo Ziulkoski, presidente da CNM.
Salto, da Warren, rebate que estados e municípios não perderão receita diretamente, e sim através dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM). Como o IR é um tributo partilhado, eles deixariam de receber R$ 1,5 bilhão em 2025, R$ 1,7 bilhões em 2026 e R$ 2 bilhões a partir de 2027.
Fonte: InfoMoney