No Mundo
Sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Milei transforma Argentina em grande experimento liberal, dizem economistas

Especialistas apontam mudanças maiores do que as feitas por Thatcher; para Elena Landau, presidente argentino muda “a relação da sociedade com o Estado, um rompimento da carona que a elite leva no Estado”

Falar das particularidades e controvérsias da economia argentina já virou um lugar comum.

Ao longo das décadas, a capital Buenos Aires passou da “Paris da América do Sul” para palco de protestos massivos, com multidões batendo panelas contra a degradação das condições de vida.

Um novo capítulo dessa história começou em dezembro de 2023, com a ascensão do economista Javier Milei ao comando do país e a transformação da combalida economia argentina em um grande laboratório de experimentos liberais.

Economistas ouvidos pela CNN ressaltam o otimismo que as propostas do atual presidente da Argentina promovem, por conta de resultados como o equilíbrio das contas públicas, valorização do câmbio em termos reais e o controle da inflação.

“É um grande experimento liberal que é ainda maior que o da [ex-primeira-ministra do Reino Unido, Margaret] Thatcher. Ela estava só focada na economia, e o Milei em uma série de outras coisas. Está sendo uma verdadeira revolução”, diz Roberto Luis Troster, sócio da Troster & Associados e ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).Play Video

Comparando a gestão de Milei com a de seus antecessores, Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central (BC) para Assuntos Internacionais, professor-adjunto na Universidade de Georgetown e colunista do CNN Money, observa que o atual mandatário “está tendo mais sucesso e talvez tenha sucesso em realizar uma reforma mais duradoura”.

Há décadas, a Argentina enfrenta uma crise econômica generalizada. Inflação, câmbio deteriorado e falta de dólares nos cofres públicos são alguns dos fatores que limitaram a economia argentina nos últimos anos.

E no cerne de todos esses problemas, um fator em comum: gastos públicos elevados.

Para manter o nível de suas reservas, a Argentina ainda contraiu uma dívida bilionária com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O empréstimo, porém, também se tornou uma das pedras no sapato dos argentinos à medida que o país foi encontrando dificuldades para honrar o compromisso. Sucessivos governos passaram pela Casa Rosada sem conseguir solucionar o problema.

E quando Alberto Fernández, ex-presidente da Argentina, indicou seu então ministro da Economia, Sergio Massa, para ser seu sucessor, a nomeação não caiu nas graças do eleitorado argentino.

Quem ficou sob os holofotes na última corrida presidencial argentina, em 2023, foi o libertário Javier Milei. O outsider político do partido La Libertad Avanza (“a liberdade avança”, em tradução livre) venceu Massa com cerca de 55% dos votos.

“Milei chegou em um ponto no qual a sociedade vivia uma desordem em função de uma exaustão de um estilo de governança de esquerda. Houve a opção de fazer algo radical e sair da mesmice, que em poucos anos de governo está tendo um sucesso acima do esperado”, avalia Volpon.

“Grande experimento liberal”

Milei prometeu uma agenda liberal que causaria um “choque econômico” na Argentina por meio de robusto corte de gastos e desregulamentações.

Desde que assumiu o cargo, em dezembro de 2023, o libertário chamou a atenção de diversos agentes econômicos, com sua agenda sendo chamada de “experimento extraordinário” pela revista The Economist.

Pouco antes de Milei completar um ano no cargo, a publicação britânica afirmou que o argentino está conduzindo um dos mais radicais e extraordinários experimentos de liberalismo econômico desde a primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, que liderou o país de 1979 a 1990.

Em entrevista ao CNN Money, o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, observa que está ocorrendo “uma das experiências mais incríveis deste século” ao olhar para a grama do vizinho.

“Me surpreende a dimensão das medidas, a maioria, ou quase, todas na direção correta. Precisa livrar a Argentina do peso do populismo e da irresponsabilidade que têm caracterizado o país pelos últimos 70 anos. A Argentina é o único caso [recente] no mundo em que o país rico empobrece, e Milei está indo na direção correta”, pontuou da Nóbrega.

Mas, no fim das contas, quais são as “experiências” que ocorrem neste “laboratório” de políticas liberais?

Terapia de choque

A Argentina colheu seus primeiros resultados superavitários em anos ao longo de 2024 graças à política de austeridade fiscal de Milei.

Ao cortar gastos com programas sociais, reduzir a quantidade de ministros em seu gabinete e buscar se desfazer de estatais, o presidente argentino afirma estar promovendo uma maior “eficiência estatal”.

“Como sempre, o mercado entende que quanto mais liberalizado e desregulamentado melhor para a atividade econômica. Menor intervenção do governo e maior restrição fiscal geram crescimento, maiores lucros e, no fim, é melhor para a bolsa”, pontua Mauro Rochlin, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Elena Landau, economista e advogada sócia da Sergio Bermudes Advogados, ressalta que “o investidor privado não quer intervenção da economia e não quer ser parceiro do Estado. A não ser o ineficiente, que precisa de subsídio”.

“Milei mostrou para a América Latina que quando você quer, você pode mudar a cultura de dependência do Estado. É um rompimento cultural, de mudar a relação da sociedade com o Estado, um rompimento da carona que a elite leva no Estado”, pontua Landau ao CNN Money.

A advogada e Tony Volpon destacam a agenda, ainda em andamento, de desregulamentações e privatizações proposta por Milei.

O presidente da Argentina adiantou nesta terça-feira (4) ao jornal La Nación que está trabalhando num decreto que fechará ou realizará a fusão de 50 agências do governo.

O entusiasmo do mercado é claramente refletido no desempenho do índice Merval, a bolsa de valores argentina.

Como efeito da “terapia de choque” de Milei, os superávits obtidos pelos cofres públicos argentinos já impactam em uma estabilização da inflação e da disparidade entre os câmbios oficial e o do mercado paralelo — o chamado dólar blue.

Em detrimento aos resultados positivos, porém, a pobreza e o desemprego cresceram na Argentina após o corte de financiamento a diversos programas sociais.

“Assim como em toda revolução, há ganhadores e perdedores. Mas, na média, a economia do país está melhorando. A Argentina tem uma economia muito diferente, com uma crise contínua, país crescendo pouco, inflação em alta, corrupção e Estado inchado. Por tanto, é necessária essa reforma radical invés de um gradualismo”, avalia Troster.

“Mas quando você está preso num túnel e vê que a fila do lado começa a andar, você se entusiasma. Se não está andando para todos, está para alguns e isso dá entusiasmo para o resto”, conclui o ex-Febraban.

Volpon relembra que houve opções mais moderadas de ruptura, como a gestão do empresário Mauricio Macri, que presidiu a Argentina entre 2015 e 2019.

O início de seu governo foi um casamento com o mercado, ao promover ajustes fiscais que trouxeram um fôlego no primeiro momento. O divórcio veio com a falta de sustentabilidade da política de Macri, que enfrentou problemas políticos na metade final de seu mandato e saiu do governo mal avaliado.

“Houve opções mais moderadas, mas o povo [argentino agora disse] ‘vamos tentar algo mais radical já que o mais moderado fracassou’. É um risco, mas também havia o risco de ficar tudo na mesmice. Apostas tem que ser feitas”, indaga o ex-BC.

Troster e Maílson da Nobréga ressaltam o fato de que, em detrimento do aumento da pobreza e do desemprego no país, a população argentina continua resiliente ao lado do presidente eleito em 2023.

“Para minha surpresa, a paciência do povo argentino é grande. Apesar de ter havido um aumento da pobreza, a popularidade dele aumentou. Isso mostra como o povo argentino se cansou dos efeitos desastrosos do partido peronista na economia”, enfatiza o ex-ministro da Fazenda do Brasil.

Com a política adotada por Milei, a inflação acumulada da Argentina encerrou o ano passado em 117,8%, após atingir um pico de 289,4% em abril de 2024. Enquanto isso, em um ano, os resultados mensais caíram de uma alta de preços de dois dígitos (25,5% em dezembro de 2023) para menos de 3%.

Por outro lado, o dólar valorizou 27,4% na cotação oficial do país, enquanto o dólar blue cerca de 25%.

Apesar da desvalorização nominal – comparando quanto a divisa abriu e fechou no ano -, se corrigido pela inflação, o câmbio argentino registrou um resultado positivo ao crescer menos que os preços do país, o que, deste ponto de vista, significa que valorizou.

Com isso, Volpon argumenta que Milei “claramente está entregando o que prometeu na campanha”.

Armadilha cambial

Porém, os economistas ouvidos pela CNN acendem alertas, além do campo social, para uma potencial armadilha cambial na qual o país pode cair — e já observa sinais no seu cotidiano.

Com essa “desvalorização controlada” do câmbio, que ganha da inflação do país, os produtos comercializados por lá acabam ficando mais caros na moeda norte-americana.

No caso do brasileiro que vai ao país vizinho, o efeito é ainda mais drástico tendo em vista a desvalorização do real vista no final do ano passado.

Contudo, apesar de parecer positiva num primeiro momento, a valorização do peso argentino comparada à inflação pode acabar se tornando um problema para o país.

“A apreciação do câmbio gera uma perda de competitividade das exportações e aumenta o incentivo à importação. Além disso, inibe o investimento”, afirma Patrícia Krause, economista-chefe da Latin América Coface.

Ao olhar para o cenário atual, Mauro Rochlin, da FGV, relembra o período em que Carlos Menem comandou a Argentina, na década de 1990.

À época, Menem buscou conter a inflação no país intervindo no câmbio e pareando os valores do peso argentino e do dólar norte-americano.

O período ficou popularmente conhecido pelos argentinos como uno a uno (“um por um”, em tradução livre).

Logo em seus primeiros dias de mandato, Milei jogou o valor do câmbio oficial para as alturas, de modo que ficasse mais próximo do dólar blue e buscando, dessa maneira, equilibrar as duas cotações.

“Naquela ocasião que ele [Menem] adotou um câmbio fixo de um para um, aconteceu uma coisa parecida com esse cenário que eu estou descrevendo [que pode ocorrer agora]. A inflação foi controlada e, paulatinamente, a valorização do câmbio tirou competitividade da exportação e reduziu a entrada de dólares”, explica Rochlin.

“O país se viu em situação de escassez de dólar e não conseguiu segurar a paridade. A coisa explodiu”, conclui.

Caso o cenário se concretize, a Argentina voltaria a viver a espiral de falta de dólares com a qual já teve de conviver.

O economista da FGV aponta que, se de fato chegar-se a esse ponto, pode ser muito complicado de reverter o cenário pelas incertezas que ele impõe.

“Se de fato a inflação for controlada, com uma política fiscal restritiva, e isso inspirar maior confiança, a Argentina pode, paulatinamente, retornar ao mercado financeiro internacional e receber dólares por investimentos estrangeiros, assim aliviando essa saída que ocorreria pelo lado comercial. Mas não sei, é muito incerto, não é uma coisa que a ‘cartilha preveja’”, ironiza.

Para Patricia Krause, a solução seria saber a hora de puxar o freio.

“Encontrar o momento certo para levantar os controlos cambiais e de capitais [cepo] é um grande desafio para 2025. Seria importante constituir reservas cambiais antes da remoção do cepo para poder fazer face a uma possível pressão de uma depreciação da taxa de câmbio. Este último poderia reacender a inflação e comprometer todo o plano econômico”, pontua a economista-chefe da Latin América Coface.

“O governo atualmente está em negociações com o FMI para um novo acordo, visando aumentar as reservas para facilitar a retirada dos controles. Logo, os laços mais estreitos com os Estados Unidos poderiam tornar mais fácil para a Argentina chegar a um novo acordo, uma vez que o país tem o maior poder de voto na instituição.”

Na terça-feira, Milei reforçou que deve encerrar as intervenções no câmbio ainda em 2025. Em uma publicação no X, realizada já no domingo (2), o presidente argentino respondeu a um usuário que “em 2026, não haverá mais cepo [na Argentina]”.

“O câmbio livre na Argentina tem muita importância. O dólar é quase um fetiche na Argentina. O argentino viu no dólar um porto seguro contra intervenções, confiscos do governo. Provavelmente isso vai esfriar e colocar um fim à bolha da adoração ao dólar na Argentina”, afirmou Maílson da Nóbrega ao CNN Money.

Perspectivas

O que os economistas ouvidos pela CNN apontam é que o maior desafio de Milei é se ele conseguirá garantir a sustentabilidade de seus feitos.

“O grande problema e solução é Javier Milei. Têm brigas desnecessárias que jogam contra Milei. Mas, na média, está conseguindo fazer. Se a democracia e o congresso ajudarem, a Argentina tem grandes chances de dar certo. Mas ainda estamos na metade do primeiro tempo, tem chão pela frente”, afirma Roberto Luis Troster.

“Se fracassar, pode se esquecer de reformas e revoluções por pelo menos muito tempo. Se der certo, é razoável esperar mudanças aqui e na América Latina. Até agora tem conseguido, mas o jogo ainda não acabou. Para dar certo, precisa diminuir o nível de desemprego; lidar com a questão do cepo para abrir a economia (depende muito de acordo com o FMI); e continuar com o apoio popular”, conclui o ex-Febraban.

Fonte: CNN