Cultura
Sábado, 4 de maio de 2024

Moacyr Luz relembra como compôs sucessos para Beth Carvalho e Fafá de Belém

Moacyr Luz classifica o Cacique de Ramos como “uma conjunção espiritual galáctica”. O espaço, no bairro de Olaria, na zona norte do Rio de Janeiro, é berço de alguns dos principais nomes do samba, como Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Almir Guineto e Zeca Pagodinho.
Quem levou o músico e compositor de 65 anos para lá foi ninguém menos do que Beth Carvalho, a madrinha do samba. Na época, Moacyr tinha uma carreira musical mais puxada para a MPB. Mas ali, na Tamarineira, ele se encontrou.
“Eu acredito numa conjunção espiritual galáctica. Acontece de estar todo mundo naquele mesmo lugar, com energia muito forte e aquilo vira um movimento”, diz ele. “Ali na Tamarineira, no Cacique de Ramos, era uma coisa impressionante. Aquilo era uma usina de música, né?”
Hoje, mais de três décadas depois, Moacyr se consagra como bastião do gênero e líder da principal roda de samba do Rio o Samba do Trabalhador, que há 18 anos movimenta o clube Renascença, no Andaraí, toda segunda-feira.
Ao longo da carreira, o sexagenário já teve mais de uma centena de composições gravadas por nomes como Gilberto Gil, Maria Bethânia, Nana Caymmi e João Bosco. Mas foi em 1989 que duas músicas mudaram seu patamar como compositor e músico.
A primeira foi “Coração do Agreste”, tema da novela “Tieta”, cantada por Fafá de Belém. Até então, ele conta, sua vida era escolher comprar um pão ou pegar um ônibus. O sucesso rendeu alguns milhares de dólares na época, pagos em dinheiro vivo pela gravadora, que foram espalhados pela cama de Moacyr, no apartamento que dividia com a mãe, na Tijuca. “Ela entrou no quarto, e eu só pude falar: ‘estou rico’.”
A segunda foi “Saudades da Guanabara”, feita a pedido de Beth Carvalho, que deu nome ao álbum da madrinha. Foi a partir daí, ele conta, que se doou de corpo e alma ao samba. A letra, quando Beth ouviu pela primeira vez, era diferente da versão que se consagraou. Não era do agrado da cantora.
“A música já existia, tinha feito em 1985, e Beth um dia me confidenciou que gostava da música, mas não da letra. Com uma letra melhor, ela gravaria. Ela falou para mim, cheio de cuidado: olha, você é brilhante, é maravilhoso, mas a letra é uma merda”, conta Moacyr, aos risos.
O músico diz que refez a letra em uma madrugada, ao lado de Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. O trio estava reunido no apartamento de Moacyr na Tijuca, na rua Garibaldi. Aldir era seu vizinho do andar de cima.
“Aldir não descia nem se dissesse que Deus estava no primeiro andar. Mas era Paulinho Pinheiro, por quem ele tinha uma admiração grande”, conta. “A gente ficou tomando umas cervejas, e eu comentei sobre o pedido de Beth.”
Foi assim que surgiram os versos imortalizados pela voz da madrinha, que diz ao Brasil que “tua cara ainda é o Rio de Janeiro”. “O disco dela já estava pronto. Ela chamou Renato Corrêa, seu produtor, e incluímos a música no último minuto. Ainda foi o título do disco. Aquele chapéu que tem na capa era lá de casa”, relembra Moacyr.
Desde a pandemia, o compositor decidiu entrar em um ritmo acelerado de produção. Só no último ano fez um EP com Paulo Malaguti, “Luz & Pauleira”, lançou um álbum com Pierre Aderne, “Mapa dos Rios”, e se prepara para lançar mais um disco do Samba do Trabalhador, ainda sem data prevista.
Além disso, nos últimos quatro Carnavais, assinou ao menos cinco sambas-enredo que tocaram na Sapucaí pelo grupo especial quatro pelo Paraíso do Tuiuti e um pela Mangueira. O número, porém, não leva em conta os muitos sambas que fez e que acabaram derrotados nas disputas internas das escolas.
“Chico Buarque me perguntou qual a sensação de ter um samba cantado na avenida. Eu falei ‘Chico, pelo amor de Deus, bicho, você tem todas as sensações do mundo’. Essa coisa de entrar pela avenida, passar pelo setor um e ser reconhecido, isso mexe muito comigo.”
Moa, como ele é chamado pelos mais próximos, diz que está construindo o seu legado e que, apesar de reconhecer já ter feito muita coisa, quer fazer mais. Vive, em suas palavras, uma angústia de letrista. “Tudo que fiz já foi. Tenho que continuar fazendo e não me preocupar com o que passou. Agora, falta fazer tudo”, diz ele.
“Tive uma crise de ansiedade esses dias. Minha mulher estava me ajudando a respirar melhor, e aí Augusto Martins me mandou uma música de João Donato sem letra. Falei ‘caramba, a angústia de um lado, e o letrista de outro’. Fiquei até de manhã fazendo a música.”
A alta produtividade pode estar ligada ao avanço da idade. Aos 65 anos, o músico já enfrentou problemas de saúde que o obrigaram a fazer pequenas pausas.
No ano passado, ficou uma semana internado na UTI para tratar uma insuficiência respiratória. Foi um susto para os parceiros de roda e aos fãs embora todos soubessem que, na semana anterior, ele havia fugido do hospital, depois de ter recebido o diagnóstico de pneumonia.
Moa diz que não tem medo de morrer, mas sim de hospital. O temor, afirma, vem dos casos de seus amigos. Beth morreu em abril de 2019, após meses internada. Aldir Blanc morreu de Covid em maio de 2020, em um hospital público do Rio, já que não tinha plano de saúde.
Há ainda Arlindo Cruz, que vive com sequelas graves de um AVC que sofreu em 2017 e precisa de cuidado em tempo integral. “A pior coisa que já vivi, e não tem nada parecido, foi o CTI. Prefiro a morte”, diz Moacyr, que já enfrentou um câncer de próstata e vive com Parkinson desde 2008.
Mas o tom dramático do músico passa longe de ser uma vontade. Faz parte, na verdade, de seu senso de humor ácido. A ideia de Moa é continuar trabalhando e produzindo até o final da vida, que espera não chegar tão cedo.
“Acredito que vou ficar pelo conjunto da obra. As pessoas vão começar a procurar pelo Moacyr Luz e falar caralho, essa música é dele? Como pode, esse cara é louco.”
“O meu prazo de validade já foi”, diz, aos risos, para logo se corrigir. “Espero viver mais 200 anos. Mas, se viver só mais um, está bom.”

Fonte: FolhaPress