Cultura
Sábado, 4 de maio de 2024

‘O Menino e a Garça’ une o melhor de Miyazaki em manifesto ao Ghibli

Mahito, o jovem protagonista de “O Menino e a Garça”, se recusa a voar na primeira oportunidade que lhe é dada no filme. A negação, que se soma aos vários convites iniciais à aventura dispensados pelo garoto, é um gesto radical na trajetória do diretor Hayao Miyazaki. O mestre máximo das animações do Studio Ghibli marcou gerações pelos voos literais de seus personagens, e, de repente, retrata um marrento.
Justiça seja feita, a situação de Mahito no longa é um tanto diferente das premissas dos outros trabalhos de Miyazaki. Mas “O Menino e a Garça” também tem muito de familiar ao público, algo que fica mais evidente ao longo de sua jornada.
A produção, que pode muito bem ser o último trabalho do diretor, se faz desse bate e rebate formado entre o estranho e o conhecido.
Voltemos à situação inicial do voo. Mahito recebe o chamado poucos dias após chegar em sua nova casa, no interior do Japão da Segunda Guerra Mundial. Ele acaba de perder a mãe em um bombardeio e o pai, seguindo com a vida, o deixa com uma nova mulher no campo. Mas quando o garoto acha que se acostumou à rotina, uma garça passa a incomodá-lo, jurando que a mãe está viva.
A garça está longe da imagem graciosa que estamos acostumados. A voz é gutural, de causar arrepios. Ela também se revela outro ser, como se suas penas e bico escondessem uma criatura com dentes e nariz protuberante por baixo –uma impressão que logo se confirma.
Mahito, de tão aporrinhado, resolve caçar o bicho. Com um arco e flecha caseiro, o garoto quer calar os lembretes da perda da mãe com as próprias mãos. Uma hora ele consegue, perfurando o bico da garça. Mas o animal ainda o seduz com a possibilidade de rever a figura materna, levando-o para uma torre abandonada na extensa propriedade.
Todos os acontecimentos narrados até aqui são apenas um cenário para a história, um contexto elaborado com paciência, por quase uma hora. Durante esse tempo, Miyazaki já revela muitos dos interesses típicos de seus filmes, mas com eles introduz alguns riscos nada cuidadosos.
A partir daí, pode-se entender “O Menino e a Garça” de duas maneiras. À distância, a animação parece uma colagem dos grandes temas do diretor. A trama leva o contexto da guerra, tema maior de “Vidas ao Vento”, de 2013; do campo, elemento marcante de “Meu Amigo Totoro”, 1988; e do épico fantástico, que se desdobra às vezes como “Princesa Mononoke”, de 1997, e em outras como “A Viagem de Chihiro”, de 2001.
Essas semelhanças são estranhas para um cineasta que soube usar das próprias obsessões para sempre desbravar o desconhecido. Esse raciocínio dita não só o cinema de Miyazaki, mas do próprio Ghibli, que tem nele a principal referência para suas produções.
Daí surge um problema e um outro olhar para “O Menino e a Garça”. Miyazaki está com 83 anos, e anunciou sua aposentadoria em 2013, pouco depois da estreia de “Vidas ao Vento”. O outro grande mestre do Ghibli, Isao Takahata, diretor de “O Túmulo dos Vagalumes” e “O Conto da Princesa Kaguya”, morreu cinco anos depois.
O tempo passa e pode ser muito cruel. Mas põe as coisas em perspectiva. Miyazaki reconhece isso no novo filme, como já fazia em “Vidas ao Vento”, um drama com pé no fantástico sobre o criador dos aviões japoneses da Segunda Guerra -um personagem com o qual ele se identificava por ver a invenção como algo maldito.
Essa dimensão pessoal se repete em “O Menino e a Garça”, que também usa a fantasia como caminho para lidar com a morte. Uma dinâmica que acontece agora de maneira visceral, porque o drama da vez é de luto, cristalino na busca de Mahito pela mãe morta -outra parte que não é inédita para o cineasta.
Nesse processo, Miyazaki se empenha na forma. A animação artesanal parece um alienígena no cenário de hoje, onde os recursos digitais aumentaram exponencialmente o ritmo das produções.
O filme até usa um pouco dessa tecnologia -como se vê no uso do zoom ou na animação de uma cortina. Mas o longa investe tudo em um ritmo cadenciado, feito de visuais que lembram os trabalhos do seu diretor nos anos 1980, não o de animações contemporâneas como “Belle” e “Suzume”.
Miyazaki está mais do que nunca atento ao próprio legado. Faz um beabá temático e narrativo que busca a essência poética do Ghibli para torná-lo em manifesto. Parece também um testamento a seus sucessores. O tempo escorre pelos dedos, assim como o de Mahito com a mãe.
“O Menino e a Garça” passa por muitos apuros nessa procura. O filme se revela aos poucos uma aventura interdimensional e de viagem no tempo, o que várias vezes força a habilidade de Miyazaki para inventar mundos. O diretor também corta intermediários no jogo simbólico, e a história existe como uma alegoria em constante transformação.
Mas Miyazaki segue mestre de uma magia visual única, o que alimenta um universo que pode bem ser o mais vago de sua obra. A trilha sonora de Joe Hisaishi trabalha como nunca para colar elementos únicos, que incluem fantasmas minúsculos e um exército de periquitos antropomorfizados.
Nesses momentos, é como se “O Menino e a Garça” reivindicasse a busca pelo desconhecido como um modo de vida. Lembra o próprio Mahito, que até se recusa a voar, mas pode muito bem ser o protagonista mais destemido de Miyazaki.

Fonte: FolhaPress