Cultura
Sexta-feira, 3 de maio de 2024

Como Ottessa Moshfegh faz ‘whodunit’ não tradicional em ‘Morte em Suas Mãos’

“Seu nome era Magda. Ninguém jamais saberá quem a matou. Não fui eu. Aqui está seu corpo”, diz o bilhete encontrado por Vesta Gul, uma viúva de 72 anos, ao caminhar pela floresta próxima à cabana em que vive com Charlie, seu cachorro de estimação. Mas não tem corpo nenhum ali.
Walter, o marido recém-morto da protagonista narradora de “Morte em Suas Mãos”, romance de Ottessa Moshfegh, é um fantasma que zanza pela memória da Vesta. Ela agora vive em uma cidadezinha rural, mas Walter -e suas demonstrações de superioridade- ainda a faz revisitar o passado.
Não fosse por Charlie e os livros que pega para ler na biblioteca pública local, a única companhia da personagem seriam as lembranças do marido -o mistério em torno de Magda, então, é um acontecimento disruptivo na rotina de Vesta.
“Morte em Suas Mãos”, assim como os outros trabalhos de Moshfegh, “Meu Ano de Descanso e Relaxamento” e “Meu Nome Era Eileen”, segue caminhos inusitados -tanto na linguagem quanto no tema-, é protagonizado por uma mulher solitária e grande parte do enredo acontece no interior buliçoso dela. O livro não é um “whodunit” -gênero da ficção centrado em assassinatos a serem elucidados- tradicional.
“A narradora tem a voz perfeita para eu explorar a autoconsciência de alguns clichês narrativos”, diz Moshfegh, 42, à Folha. “Mas mais importante, eu precisava de uma estrutura maleável para lidar com o que eu queria escrever, que é sobre remorso, perda, amor, morte e liberdade.”
Ela se diz incapaz de escrever um mistério -ou qualquer outra coisa- tradicional. “Sempre estou interessada em conteúdo e forma e em como borrar as linhas que dividem a ficção e a literatura, a arte e o entretenimento.”
Faz sentido. Vesta não tem nada além do bilhete para investigar o caso, mas engana-se quem pensa que ela não tem recursos. A personagem recorre a um guia de desenvolvimento de ficção de mistério para escrever sobre o passado de Magda.
A morta, então, ganha vida ao virar, na imaginação de Vesta, uma imigrante de Belarus que trabalha em uma loja do McDonald’s e vive no subsolo de uma casa de família, protegida pelo adolescente Blake, mas perseguida pela mãe dele, Shirley. Será que um deles matou Magda? A realidade de Vesta e suas anotações começam a se misturar.
A aclamada escritora é conhecida por ter protagonistas femininas pelas quais ela destila um senso de humor indecoroso -a crítica literária frequentemente se refere a elas como “estranhas”.
Em “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, por exemplo, a personagem central é uma patricinha misantropa que toma dezenas de remédios para passar um ano inteiro dormindo isolada em seu apartamento. Não à toa, nas redes sociais ele foi eleito por muitas pessoas como “o” livro do distanciamento social da pandemia.
Já “Meu Nome Era Eileen”, um thriller psicológico, caiu nas graças dos leitores a despeito dos hábitos escatológicos da protagonista, o que inclui cheirar os dedos da mão após esfregá-los na própria vagina.
“Morte em Suas Mãos” não tem a mesma veia cômica desses dois, mas assim como eles, tornou-se relevante -e objeto de interesse de Hollywood. Não há novidades sobre a adaptação cinematográfica para além da venda dos direitos.
A produção de “Meu Ano de Descanso e Relaxamento”, por sua vez, não rende notícias desde que a atriz Margot Robbie entrou no projeto.
Por outro lado, “Eileen”, com Anne Hathaway no elenco, está pronto. O roteiro foi escrito pela própria Moshfegh, em parceria com o marido dela, o também escritor Luke Goebel, com quem ela vive em Pasadena, Califórnia.
O filme foi recebido com empolgação por público e crítica no Festival de Sundance deste ano e estreia ainda em 2023 nos Estados Unidos. No Brasil, não há previsão de lançamento.
Moshfegh já havia escrito o roteiro de “Passagem”, drama com Jennifer Lawrence, junto de seu marido. Nos últimos anos, a autora se tornou requisitada não só por Hollywood, mas pela moda também. Ela já desfilou para a marca Maryam Nassir Zadeh.
“Tenho sorte por tantas oportunidades bacanas. As novidades me deixam ansiosa, mas acho que mantêm viva também”, diz. “Mas com certeza vou sempre me ver como uma romancista.”
MORTE EM SUAS MÃOS
Preço: R$ 74,90 (200 págs.); R$ 49,90 (e-book)
Autoria: Ottessa Moshfegh
Editora: Todavia
Tradução: Bruno Cobalchini Mattos

Fonte: FolhaPress