Internacional
Sexta-feira, 17 de maio de 2024

Conflito na Ucrânia traz à tona memórias da Segunda Guerra

Em muitos idosos alemães, imagens de destruição, morte e fuga na Ucrânia despertam lembranças de suas próprias experiências na infância. E mesmo quem não viveu a Segunda Guerra pode ter traumas relacionados ao conflito. As cenas da guerra na Ucrânia trazem à tona lembranças de um passado distante. “O medo entre nós, crianças da guerra, nunca desaparece. Você o carrega sempre consigo. Posso sentir essas lembranças fisicamente”, diz Reinhild Handt, de 84 anos, que vivenciou a Segunda Guerra Mundial quando pequena.

Hoje, Handt vive em um complexo residencial para idosos em Berlim. Ela é de Meissen, cidade no leste da Alemanha, não muito longe de Dresden, que foi quase completamente destruída por bombas americanas e britânicas no final da Segunda Guerra Mundial.

A Alemanha havia iniciado a guerra em 1939 – um conflito global que se estima ter ceifado a vida de mais de 60 milhões de pessoas. Na época, Handt ainda não conseguia entender o que estava acontecendo: por que as sirenes soavam constantemente, por que ela tinha que se esconder em um bunker escuro e por que caíam bombas. No final da guerra, chegou a ver cadáveres caídos nas ruas.

A idosa carrega consigo essas lembranças ruins, que as cenas da invasão da Ucrânia pela Rússia fazem aflorar. O brutal conflito desencadeado por Adolf Hitller e a guerra da Rússia sob Vladimir Putin contra a Ucrânia não podem ser comparados de forma direta, mas Handt traça paralelos. “Quando vejo as imagens [da Ucrânia], penso sempre: parece com Dresden no passado”, diz ela, se lembrando de quando a cidade alemã foi reduzida a escombros e cinzas.

Desespero e choro nas conversas

A especialista em traumas Sabine Tschainer-Zangl mantém conversas com um grupo de cerca de uma dúzia de idosos entre 83 e 100 anos para um projeto de pesquisa. Desde que começou a invasão da Rússia na Ucrânia, em 24 de fevereiro, os diálogos têm se focado em um tema: a guerra.

“A relação é sempre feita. Ou seja, como eles sentem tristeza pelas pessoas na Ucrânia. Há uma compaixão muito grande. Nós, especialistas, chamamos isso de ‘aspirador de pó de trauma’, quando seus próprios traumas não processados ​​estão no centro da própria experiência. É muito difícil direcionar seu cérebro para outro lugar”, diz. “Sinto desespero nas conversas. Vejo pessoas chorando.”

Traumas e tabus

Mas as imagens de desespero, fuga e morte na Ucrânia não provocam algo apenas nas pessoas que vivenciaram a Segunda Guerra Mundial. “Na Alemanha, presumimos que, devido aos acontecimentos históricos, cerca de 30% das pessoas com mais de 67 anos apresentem distúrbios traumáticos na velhice. Para comparação, na Suíça, esse índice é de apenas 10%”, explica a especialista em trauma.

Isso também tem a ver com o fato de que a Alemanha foi a nação perpetradora de grande desgraça ao mundo. “Vergonha, sentimento de culpa e consciência pesada. Esses tabus, muitas vezes, significam que o trauma não pode ser processado”, explica.

Klaus Gradowski, de 74 anos, pertence à geração de crianças do pós-guerra. Ele brincou nas ruínas de Berlim e ficou alojado quando criança no destruído Palácio de Bellevue, hoje residência oficial do presidente alemão.

“Acho que as cenas que vejo agora da Ucrânia são muito piores do que as que vi quando criança do pós-guerra na Berlim bombardeada”, disse à DW.

O ex-trabalhador da construção civil tem uma grande preocupação: “Talvez haja uma guerra mundial ou uma guerra nuclear. Acho que então não restará nada deste mundo.”

Handt também está preocupada. “Tenho medo de uma guerra nuclear, uma guerra mundial. Não descarto isso.”

Medo de uma nova guerra mundial

Uma pesquisa recente mostra como a guerra na Ucrânia afeta a vida cotidiana na Alemanha, distante apenas cerca de 1.400 quilômetros do país invadido. O conflito preocupa alemães de todas as gerações.

Feita a pedido da revista Der Spiegel pelo Instituto Civey, a pesquisa ouviu 5 mil cidadãos. Entre os entrevistados, 55% temem uma guerra nuclear e 62% temem uma guerra mundial. Além disso, 41% se sentem psicologicamente afetados pela guerra, com insônia, sentimentos de impotência ou medo.

Temas como medo, resignação e temor do fim dos tempos causados por uma guerra não são surpresa para a especialista em traumas Ingrid Wild-Lüffe. “Essas imagens de guerra criam uma sensação de perda maciça de controle. Isso assusta as pessoas e leva a transtornos traumáticos”, explica.

O que fazer com os sentimentos de medo e as lembranças? Para Reinhild Handt, algo provou ser particularmente eficaz. “Só assisto ao noticiário uma vez por dia para estar informada sobre o básico.”

A especialista em traumas Sabine Tschainer-Zangl aprova essa abordagem. Falar sobre o tema também ajuda. “O pré-requisito, no entanto, é que você converse com pessoas que tenham o conhecimento necessário.”

A especialista ficou chocada com o que vivenciou recentemente em uma casa de repouso: uma enfermeira ligou a televisão e assistiu a reportagens de guerra com os idosos. “Esta abordagem é muito infeliz.”

Para Handt, é difícil conversar sobre a Ucrânia, sobre a guerra e as lembranças. “Fico muito triste que as pessoas até hoje não tenham aprendido a lidar umas com as outras de forma sensata. Eu simplesmente não posso e não vou acreditar que a guerra deva ser sempre o último recurso.”

Fonte: Deutsche Welle