Não deixa de ser irônico que a obra indicada a representar no Oscar 2022 o Brasil de Bolsonaro seja um filme assumidamente gay como este “Deserto Particular”, de Aly Muritiba. E, como ironia pouca é bobagem, todo o drama gira em torno de um policial, instrutor na escola de oficiais, que mandou um recruta para o hospital, foi suspenso e passará por julgamento.
Esse policial (não é dito, mas parece da PM), por nome Daniel (Antonio Saboia), é um bombadão que sente um grande vazio dentro de si, e isso tem a ver com a misteriosa ligação que mantém à distância com a não menos misteriosa Sara, mulher que sumiu de sua vida de forma mais ou menos misteriosa.
Daniel está tão apaixonado que pouco se lixa para o julgamento judicial de que será objeto. Ele sai em viagem, atravessa metade do país para achar a misteriosa mulher, que mora no interior da Bahia, e usa de mil subterfúgios para não vê-lo. Aliás, ela manda o amigo Fernando (Thomas Aquino) como embaixador para falar com Daniel. Sara tem medo de Daniel. Ou seja, também é apaixonada por ele.
Eles têm um brevíssimo encontro numa boate, afinal. Mas Sara foge. Parece disposta a manter o clima de uma paixão tipo Marlene Dietrich nos anos 1930, cheia de véus, mistérios e tal. Ela tem boas razões. Depois de um encontro cheio de danças e beijos, Daniel descobre que Sara não é bem Sara. É Robson, um jovem que durante o dia trabalha levando sacas de um lado para o outro. Assim como no passado outros descobriam que Marlene Dietrich tinha um passado duvidoso, Daniel descobre que Sara é um travesti. E não se conforma com isso. Julga-se enganado. Está apaixonado por um homem.
Bem, ninguém é perfeito. Muita água vai rolar por baixo da ponte de Sobradinho, onde jaz uma cidade submersa -uma analogia óbvia com os desejos submersos de Daniel.
Acrescente-se a isso uma circunstância que, a rigor, é a substancia do roteiro de “Deserto Particular”: os pais. Sobre eles vale a pena deter-se um pouco: de Daniel é um senhor senil (por idade ou Alzheimer), ex-oficial também ele. Mas Daniel sente falta da figura materna, morta. No entanto, é ao pai (a Lei) que segue, tornando-se também policial.
O de Robson mandou-o para Sobradinho para que a avó “desse um jeito” nele. Seus esforços são em vão, assim como os do pastor da igreja que costuma frequentar. Ainda que piedosa, sua alma se decepciona ao perceber que nem mesmo Deus, o pai dos pais, consegue dar ao rapaz a cura que ela espera.
Existe coragem num filme em que o principal personagem é um militar (a rigor, um PM é militar, não?) que se descobre gay. E seria divertido ver a reação do Brasil paralelo a um Oscar dado enfim ao Brasil, mas por uma questão de “ideologia de sexo”. Vale a pena torcer por isso. Infelizmente é bem pouco provável que aconteça.
À audácia do tema corresponde aqui uma concepção dramática antiquada, que faz com que o drama de Daniel pareça distante, teórico, mediado por aspirações ao bom gosto, quando mais interessante seria atirar-se num melô delirante, tipo os mexicanos dos bons tempos. Apesar do bom desempenho dos três atores centrais, parece faltar um tanto de paixão, de “amour fou” descabelado, a este filme sobre a paixão que resulta um tanto pálido.
DESERTO PARTICULAR
Avaliação: Regular
Quando: 2021
Onde: Brasil
Direção: Aly Muritiba
Fonte: FolhaPress/Inácio Araujo