Internacional
Sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Depois de 20 anos, ‘corralito’ ainda é trauma na Argentina

Um áudio contendo fake news se viralizou rapidamente na Argentina nas últimas semanas, causando alvoroço e preocupação. Nele, circulava um suposto plano do governo de implementar um novo “corralito” no país, aos moldes do que foi feito em 2001, por conta da escassez crônica de dólares na economia.
O furor que a fake news provocou no país mostra o tamanho do trauma que a medida deixou nos argentinos até os dias de hoje -e fez autoridades se apressarem em desmenti-la.
Há 20 anos, em meio a uma forte crise econômica, a população correu aos bancos e, em cerca de três meses, sacou cerca de US$ 22 milhões de suas contas. À época, a economia do país era dolarizada. Para evitar a fuga de recursos e um consequente grave problema de liquidez, o governo propôs um mega confisco bancário, limitando as retiradas a 250 pesos (o equivalente a US$ 250) por semana. Em torno de US$ 70 bilhões ficaram congelados nos bancos.
Anunciada pelo então ministro da economia, Domingo Cavallo, em 1º de dezembro de 2001, um sábado, o corralito foi posto em prática na segunda-feira seguinte, dia 3 de dezembro.
Revoltados, os argentinos atacaram bancos, tentaram entrar à força em agências para retirar seu dinheiro, moveram ações na Justiça. Ao mesmo tempo, um clima de tensão social rapidamente escalou, sendo reprimido brutalmente. Ao todo, morreram 39 pessoas, segundo a Secretaria de Direitos Humanos.
A crise sairia completamente do controle do então presidente, Fernando de la Rúa (1937-2019), que acabou renunciando no dia 20 de dezembro e abandonando, de modo vergonhoso, a Casa Rosada a bordo de um helicóptero, que o tirou do país.
O país ficou à deriva e teve cinco presidentes num período de 11 dias, até que Eduardo Duhalde assumiu a tarefa de organizar minimamente o caos.
Agora, além de autoridades, figuras respeitadas da economia, como o ex-presidente do Banco Central Martín Redrado, destacaram que, por mais crítica que esteja a situação econômica argentina hoje, não há razão para um novo confisco bancário.
“Na época da conversibilidade, quando um peso valia um dólar, não havia moeda americana para todos os pesos que estavam no sistema bancário. Portanto, se todos quisessem fazer saques ao mesmo tempo, o sistema quebraria. Por isso se adotou o corralito”, disse Redrado.
“Agora os dólares existem. Além disso, o Banco Central, desde 2003, tem regulamentações muito específicas que fazem com que os depósitos em dólar dos argentinos estejam respaldados por empréstimos a empresas que geram dólar”.
Desconfiança A jornalista Maria O’Donnell, autora dos livros “Aramburu” e “Born”, afirma que mesmo com essas garantias, e apesar das regulamentações, pessoas bem informadas creem que um novo confisco possa ocorrer.
Uma das consequências de longo prazo da medida tomada 20 anos atrás foi a desconfiança dos argentinos com relação a seu sistema bancário. Embora a prática de guardar dólares em casa ou em caixas-fortes já existisse desde os períodos de hiperinflação, nos anos 1970 e 1980, o costume ficou mais intenso depois de 2001.
“O que mais deixava as pessoas desesperadas naquela época eram o corralito, não poder ter acesso ao seu dinheiro, e também o descontrole social, a violência desenfreada, era uma incerteza muito grande com relação ao que iria acontecer”, diz O’Donnell.
O pesquisador Claudio Negrete reforça que a crença dos argentinos nos bancos apenas durou durante a conversibilidade, quando o peso equivalia ao dólar. Antes disso, e depois, imperou a desconfiança.
“A conversibilidade havia sido uma medida para conter a inflação, e funcionou por um tempo, mas não era um plano econômico. Uma vez que a conversibilidade acabou, as pessoas saíram dos bancos e passaram novamente a não confiar neles. Isso está mudando um pouco, com as transações digitais, mas é muito incipiente”, afirma Negrete.
“Foi um atropelo muito doloroso o ano de 2001. Deixou uma marca muito forte nos argentinos, é algo difícil de recordar. Mas muito mais doloroso é não ter memória, porque a dor de não ter memória afeta o futuro, nossos filhos, nossos netos e toda a sociedade”, diz o ator Ricardo Darín, que viveu um dos muitos argentinos que perderam uma fortuna com o corralito e que tiveram sua vida e a de sua família e amigos transformadas no filme “A Odisseia dos Tontos”.
Neste domingo (5) o History Channel estreia o documentário “2001 – El Año del Corralito”, narrado por Darín.
Já o historiador Felipe Pigna resgata aspectos positivos do corralito. “Não foram boas as consequências, foi sofrido ver famílias caindo na miséria, gente indo morar na rua, mas ao mesmo tempo o espírito de sobrevivência do argentino foi colocado à prova, e soubemos sobreviver. Instalaram-se cooperativas e assembleias nos bairros para resolver os problemas das pessoas, armou-se uma solidariedade”, lembra.
Em seu caso, ainda, afirma que houve um maior interesse pela história do país.
“As pessoas queriam saber como tínhamos chegado onde estamos, então houve uma busca renovada por meus livros, além do que as pessoas colocaram bandeiras argentinas nas janelas e cantavam o hino nacional. Creio que nos deixou uma lição.”
Pigna é autor de uma popular série de livros de divulgação chamada “Mitos da História Argentina”, além de biografias de vários próceres.

Fonte: FolhaPress/Sylvia Colombo