Um simples cachorrinho de pelúcia pode ajudar a juntar os fragmentos da história da imigração judaica no Brasil. O bichinho cruzou o oceano Atlântico vindo da Europa, aportou em Santos em 1940 e, hoje, é uma das peças que compõem o acervo de pouco mais de 2.000 itens do Museu Judaico, que abre suas portas em São Paulo neste domingo (5), depois de quase dez anos em obras.
O animal de pelúcia carrega um significado especial para Elizabeth Posva, a doadora do brinquedo para o museu, desde que sua família vivia na Alemanha. Sua mãe, quando estava no oitavo mês de gravidez da segunda filha, Edith, teve de fazer uma cesariana de emergência, a que se seguiu uma laqueadura que a impediria de ter mais filhos.
As duas meninas viviam com os pais em Nuremberg, no momento em que testemunharam um triste acontecimento: a Noite dos Cristais, como viria a ser conhecido o ataque organizado pelos nazistas contra judeus nos dias 9 e 10 de novembro de 1938.
As janelas da casa onde moravam foram quebradas. Cacos de vidro caíram sobre o berço de Elizabeth e Edith, um ato de violência que as marcaria por toda a vida.
Felizmente, a família sobreviveu à ação. Em seguida, conseguiu a documentação para vir para o Brasil -o cachorrinho de pelúcia, inseparável das irmãs, veio junto com elas.
À avó das meninas, com 67 anos à época, o visto de viagem foi negado. O motivo? Foi considerada “velha demais”.
Uma semana depois de assistir à partida dos familiares, a avó foi levada pela Gestapo para Riga, naquele que ficou conhecido como o Massacre de Rumbula, quando, no fim de 1941, 25 mil judeus foram assassinados na Letônia.
Distante 1.000 km dali, um conjunto de talheres de prata, usados pelos oficiais alemães, conseguiu manter-se escondido graças ao cuidado de uma mulher judia que cozinhava para eles no campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia. As peças, cujos cabos tinham gravados o símbolo da águia imperial e a suástica nazista, também fazem parte da coleção.
“Recebemos todos esses objetos das mãos dos sobreviventes ou de seus familiares”, conta Ruth Sprung Tarasantchi, 86, diretora de acervo. “Todas as informações e as histórias que temos são as que as próprias pessoas, as doadoras, nos contaram”, explica ela.
Também da Polônia, em Lodz, segundo maior gueto de judeus daquele país, Moisés Dzialowski guardou um relógio de bolso. Manteve o objeto escondido dentro do sapato durante o período de campo de concentração. Não se sabe, todavia, quando o relógio, que também está no catálogo do museu, chegou por aqui.
Há ainda um contrato matrimonial judaico (ketubá), do fim do século 19. Pertencia a judeus que vieram do Marrocos para cá na época do Ciclo da Borracha (1879 a 1912).
Esse grupo viveu em Belém e Manaus, como em outras cidades amazônicas -a capital do Pará foi a cidade onde, a partir da década de 1820, se formou a segunda comunidade judaica organizada no Brasil. Registros revelam que a primeira nasceu no século 17, entre 1630 e 1654, no Recife.
Segundo os cálculos da comunidade judaica, hoje 120 mil judeus vivem no país. São Paulo concentra o maior agrupamento, com aproximadamente 60 mil pessoas.
Felipe Arruda, 41, não é judeu. Diretor do museu, ele explica que o espaço não se restringe a materiais antigos. “Nossa missão é manter viva as experiências, as histórias, as memórias e as tradições judaicas em diálogo com o Brasil contemporâneo, de diversidade étnica e cultural.”
Na exposição temporária “Da Letra à Palavra”, 32 artistas brasileiros de arte contemporânea exploram a relação entre a arte e a escrita, a imagem e a palavra. Já “Inquisição e Cristãos-Novos no Brasil: 300 Anos de Resistência” se debruça sobre a luta dos cristãos-novos para reconstruir suas vidas no país durante vigência da Inquisição.
Arruda fala que a instituição quer ampliar o diálogo de forma plural, desconstruir estereótipos e combater a intolerância e o preconceito. Para o ano que vem, ele já prepara um festival de cinema de humor judaico e outro literário.
Mulher observa néon azul com a palavra “nós”
Filho de imigrantes da Lituânia e da Bessarábia, o escritor e cineasta Marcio Pitliuk, 67, conta que o museu irá apresentar aos brasileiros de que maneira os judeus contribuíram para a formação do país. “A imigração judaica participou ativamente de todos os campos, da saúde à economia, da cultura à indústria. Fomos recebidos com liberdade para seguirmos nossas tradições.”
Resultado do empenho de um grupo de voluntários criado há 20 anos, o Museu Judaico de São Paulo dará continuidade a essa história.
Fonte: FolhaPress/Roberto de Oliveira