Mais de 400 anos após seus antepassados serem perseguidos e expulsos de Portugal durante a Inquisição, a produtora de cinema Fernanda Laignier conquistou a cidadania do país europeu.
Assim como ela, mais de 50 mil descendentes dos judeus sefarditas também já pediram o passaporte luso: um direito previsto em lei desde 2015 e cada vez mais procurado por brasileiros.
“Descobri que tinha esse direito apenas em junho de 2019. Um dia minha mãe me mandou uma mensagem falando que alguns familiares estavam se informando e que parecia que nós, pela ascendência direta sefaradi [ibérica, em hebraico], também tínhamos direito”, conta.
“O sonho do passaporte europeu para muita gente é uma coisa completamente fora da realidade, e eu fazia parte desse grupo de pessoas que não tinham a menor perspectiva.”
Judia praticante -e com um bom conhecimento das origens da família-, ela relata não ter tido muita dificuldade para reunir a documentação exigida.
Além de ser maior de idade e de jamais ter sido condenado por um crime cuja pena em Portugal seja superior a três anos de prisão, quem pleiteia a nacionalidade precisa apresentar provas de ser descendente da comunidade sefardita obrigada a sair do país no século 16.
Os requerentes montam uma espécie de dossiê com informações genealógicas que comprovam a ligação ao grupo expulso da Península Ibérica. Esse material precisa ser então submetido à avaliação de especialistas de uma comunidade judaica em Portugal -atualmente, a Comunidade Israelita do Porto e a Comunidade Israelita de Lisboa são as entidades aprovadas para emitir o certificado exigido pelo governo.
As autoridades também aceitam documentos que comprovem a conexão com alguma comunidade judaica sefardita de ascendência portuguesa em outras partes do mundo. De posse do certificado, é possível enfim fazer o pedido de naturalização junto ao Ministério da Justiça de Portugal.
Especialista em pedidos de nacionalidade para descendentes de judeus sefarditas, a advogada Raphaela Souza diz que as etapas de levantamento da documentação são burocráticas, mas que o processo em si é simples. “E as autoridades portuguesas têm se mostrado muito comprometidas com a iniciativa, uma forma de reparação histórica”, diz ela, sócia da consultoria jurídica Portugal para Todos.
A Inquisição foi criada em Portugal em 1536 e perseguiu especialmente os chamados cristãos-novos (judeus forçados à conversão religiosa), suspeitos de secretamente praticar sua antiga fé. O sistema permaneceu vigente por quase três séculos e chegou ao fim em 1821.
Para aproveitar a busca documental, a nutricionista carioca Juliana Nigri e vários familiares optaram por fazer o processo simultaneamente, uma opção comum para muitos dos que pleiteiam a nacionalidade. “Entramos eu, minha mãe, meu tio, minha prima. Como a gente tem de fazer a árvore genealógica e todas essas coisas relacionadas à história da família, resolvemos fazer tudo de uma vez.”
Antes de imigrar para o Brasil, a família de Nigri foi integrada a uma comunidade de judeus sefarditas no Líbano. A manutenção das tradições religiosas judaicas, no entanto, não é condição obrigatória para a obtenção da nacionalidade portuguesa por essa via. Pessoas que sigam outras religiões também têm direito à naturalização. Já o processo de prova documental pode ser mais exigente.
“Existe um outro nicho de candidatos, que comprova a ascendência sefardita somente pela árvore genealógica. Nesses casos, porém, é preciso que toda a linhagem, todos os ascendentes até o sefardita da Península Ibérica, sejam comprovados”, diz Souza.
Etapa fundamental para os processos de nacionalidade, o estudo genealógico dos candidatos -e a montagem do dossiê para avaliação das comunidades israelitas portuguesas- pode ser feito por conta própria ou com o auxílio de assessorias profissionais.
Há diversos genealogistas que, nos últimos anos, especializaram-se no levantamento de informações sobre os descendentes de judeus sefarditas brasileiros. Esses serviços costumam custar entre 100 euros (cerca de R$ 612) e 500 euros (R$ 3.600), dependendo do grau de complexidade.
Existem vários fóruns especializados no tema, incluindo grupos no Facebook e canais no YouTube que reúnem indicações de documentos para quem deseja fazer o estudo genealógico por conta própria. Sites que compilam informações genealógicas e familiares, como o Family Search, também são aliados na busca pelas origens perdidas.
Com a lei em vigor há mais de cinco anos, as comunidades israelitas portuguesas já têm validadas diversas linhagens de descendência no Brasil. Assim, o processo de comprovação da ancestralidade muitas vezes acaba simplificado, já que é possível fazer uma busca entre os ancestrais reconhecidos.
Em 2015, o governo português publicou um decreto com uma lista de alguns dos sobrenomes comuns dos descendentes de judeus sefarditas e dos chamados cristãos-novos. A relação inclui alguns dos nomes mais populares entre as famílias brasileiras.
São eles: Abrantes, Aguilar, Almeida, Álvares, Amorim, Andrade, Avelar, Azevedo, Barros, Basto, Belmonte, Brandão, Bravo, Brito, Bueno, Cáceres, Caetano, Campos, Cardoso, Carneiro, Carvajal, Carvalho, Castro, Crespo, Coutinho, Cruz, Dias, Dourado, Duarte, Elias, Estrela, Ferreira, Fonseca, Franco, Furtado, Gaiola, Gato, Gomes, Gonçalves, Gouveia, Granjo, Guerreiro, Henriques, Josué, Lara, Leão e Leiria.
Além de: Lemos, Lobo, Lombroso, Lousada, Lopes, Macias, Machado, Machorro, Martins, Marques, Mascarenhas, Mattos, Meira, Melo e Prado, Mello e Canto, Mendes, Mendes da Costa, Mesquita, Miranda, Montesino, Morão, Moreno, Morões, Mota, Moucada, Negro, Neto, Nunes, Oliveira, Osório (ou Ozório), Paiva, Pardo, Pereira, Pessoa, Pilão, Pina, Pinheiro, Pinto, Pimentel, Pizarro, Preto, Querido, Rei, Ribeiro, Rodrigues, Rosa, Sarmento, Salvador, Silva, Soares, Souza, Teixeira, Teles, Torres, Vaz, Vargas e Viana.
Com base na divulgação dos sobrenomes, começaram a circular notícias falsas afirmando que a existência de um desses nomes na certidão de nascimento já seria suficiente para ter direito à nacionalidade portuguesa. A lista, na verdade, é apenas uma referência: não dá direito à nacionalidade nem significa que pessoas com outros sobrenomes não sejam descendentes dos sefarditas expulsos.
A quantidade crescente de pedidos, aliada à mudança das regras na vizinha Espanha, que em 2019 encerrou a concessão de nacionalidade para judeus expulsos na Inquisição, tem levado a pressões de alguns setores para mudanças das regras também em Portugal.
Dos cerca de 180 mil pedidos de nacionalidade portuguesa em 2019, cerca de 14% foram por esse motivo. Em 2020, o governo chegou a cogitar a exigência de pelo menos dois anos de residência em Portugal antes da concessão da nacionalidade, mas o Executivo acabou desistindo do projeto.
Fonte: FolhaPress/Giuliana Miranda