Cultura
Quarta-feira, 17 de julho de 2024

Mestre Zé Olhinho, 60 anos de cantoria no bumba-meu-boi do Maranhão

Idealizador de uma das mais importantes manifestações culturais do Maranhão, o batalhão do bumba-meu-boi Unidos de Santa Fé, José de Jesus Figueiredo, conhecido carinhosamente pelo apelido de ”Mestre Zé Olhinho”, vive um momento de só gratidão por tudo que a vida lhe reservou.
O cantador -que ganhou o apelido por causa dos olhos pequenos, está comemorando 78 anos de idade e 60 anos de cantoria- começou a brincar bumba meu boi com seu pai aos sete anos. Aos 12, já puxava toadas quando ainda morava em São Vicente de Férrer, cidade localizada a 275 quilômetros da capital, São Luís.
A festa começa a se organizar sempre a partir do mês de outubro, com ensaios de novembro em diante para a temporada de apresentações que só vão acontecer no mês de junho. E que a “morte” da brincadeira acontece em agosto, e começando todo o ciclo de preparação nos meses seguintes.
“Acabou o período de apresentações, a gente começa logo em seguida tudo de novo repondo tudo que foi danificado e preparando as indumentárias. Tudo isso que você vê no Boi Unidos de Santa Fé passam pelas minhas mãos com ajuda de algumas pessoas que se interessam e fazem a brincadeira acontecer”, disse o cantador.
Os membros do grupo reúnem-se em funções de diretoria, cordão, índios, índias, cazumbás, batuqueiros e um atuante grupo de apoio de aproximadamente 25 pessoas.
Tudo que aprendeu no bumba-meu-boi, conta o mestre, aprendeu com João Câncio dos Santos, dono do Boi de Pindaré, e que se hoje o Boi Unidos de Santa Fé é o que é, é por conta de sua dedicação 24h por dia.
Zé Olhinho diz ter ainda muita vitalidade apesar de sua idade, e que só tem o bumba meu boi e o futebol que ainda joga nos finais de semana como atividade física.
Já em seu vigésimo casamento, o cantador conta ter “mais de 15 filhos” e que parou de contar o número de netos quando chegou o 42º, sem falar dos binestos. “Com essa última ainda não tenho filhos. Estamos todos os dois capados!”, brincou ele.
O bumba-meu-boi Unidos de Santa Fé, conta o mestre, está passando pelo seu melhor momento pelo reconhecimento que conquistou ao longo dos anos e pelo sucesso que se tornou a toda “Guerreiro Valente”, composta há seis anos por ele, e que transformou-se em uma das músicas mais tocadas nas emissoras de rádios e nos arraiais da capital maranhense.
“Nós tivemos a oportunidade de ver Coxinho fazer uma toada linda que se tornou hino do Maranhão [Urrou do Boi], depois veio Donato [Bela Mocidade], depois Humberto de Maracanã [Maranhão Meu Tesouro, Meu Torrão], e graças a Deus chegou a minha vez”, contou.
“Eu já tinha ideia da música contando a minha história de São Vicente de Férrer, mais eu fiz o refrão dessa toada quando vi Neymar Jr jogando pelo Santos fazendo uma dancinha, e ele batia o punho nos braços. Me lembrei da minha tribo como ela dança. Quando vi aquele gesto me veio a cabeça: ‘É tchum! É tcham! É tchum! É tcham! Eu vou até de manhã’. Falei para o pessoal do boi e eles assimilaram o que eu tinha pensado”, disse o cantador falando que a toada pegou geral no ensaio.
“O guerreiro valente”, como também é chamado, diz, que o início da pandemia, a brincadeira teve que se adaptar. Há dois anos, encerraram as grandes apresentações. Para que os trabalhos não fossem interrompidos, o boi participa de lives e pequenos eventos no qual a manifestação cultural leva apenas 20 integrantes para as apresentações.
“É bastante preocupando para gente, pois o boi não tem saído na sua totalidade. A gente tem que entender e atender a solicitação das autoridades de saúde que devem ser cumpridas. Nós estamos trabalhando nesse sentido. Usando máscara e álcool em gel em nossas apresentações que hoje temos que infelizmente manter o distanciamento social”, contou o mestre.
A brincadeira hoje, conta ele, não está faturando quase nada, só o suficiente para manter a tradição e ajudar os integrantes com uma pequena gratificação financeira.
“O pouquinho que a gente ganha tem que pagar para o brincante que participa e para o pagamento do transporte. Nem alimentação que antes a gente fornecia, a gente não está conseguindo fazer infelizmente, mas estamos na lida contando com a proteção de Deus, Jesus, do Divino Espirito Santo e todos os santos. Espero que ano que vem estejamos todos unidos para fazer o São João acontecer como de costume: com muita festa”, disse Zé Olhinho demonstrando toda sua fé.
Sobre o futuro do bumba do Complexo Cultural do Bumba-meu-Boi, que em dezembro de 2019 se tornou Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em Bogotá, na Colômbia, Zé Olhinho fala com um misto de tristeza e preocupação.
O mestre, que nasceu em 1943, está aposentado pelo Sindicato dos Arrumadores de São Luís, atividade que exerceu por duas décadas e que lhe deixou como sequela dores na coluna oriundas de hérnia de disco.
“Infelizmente no meu sotaque [de Baixada] a parte da cantoria a gente não vê nenhuma perspectiva de aparecer um rapaz de 18, 20 anos querendo cantar. E nós estamos com essa dificuldade em todos os bois, pois hoje só tem coroa de 50 anos para lá. Eu tô com 78 anos. Já não tenho boa saúde, tô com duas hérnias de disco e onde eu vou cantar já é sentado porque não posso me manter em pé.”
O mestre conta que a voz já não continua como a de uma década atrás. “Então eu fico temeroso, fico muito triste em ver essa situação Em outras áreas como percussão, o pessoal que brinca de índia, caxumba a gente vê um interesse. Fico muito preocupado com o futuro do bumba-meu-boi principalmente com o Sotaque da Baixada, como o estilo Costa de Mão que já está quase extinto, e só dois se apresentam hoje na capital. Isso nos deixa muito triste. Pois como já disse não temos perspectiva”.
HISTÓRIA DO UNIDOS DE SANTA FÉ
Em 1940, centenas de famílias da região da Baixada migraram para áreas adjacentes de conjuntos habitacionais e rios da cidade de São Luís, principalmente na região onde hoje está situado o Bairro de Fátima.
Residentes em bairros próximos ao Centro da capital, mantiveram os costumes, as crenças e a sua cultura, e assim surgiu o sotaque do Bumba Meu Boi da Baixada em São Luís.
Em 1988, foi fundada a Associação Cultural do Bumba Meu Boi e Tambor de Crioula “Unidos de Santa Fé”. Coordenada por “Zé Olhinho”, Raimundo Miguel Ferreira e João Madeira Ribeiro, a fundação da nova instituição jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de caráter social, cultural e recreativo, promove e mantém o grupo folclórico Unidos de Santa Fé, divulga a cultura popular e suas manifestações folclóricas.
Referência para o bairro de Fátima, onde está situado o barracão-sede, o Boi Unidos de Santa Fé e o Tambor de Crioula têm destacada atuação nas festividades culturais do estado do Maranhão.
A ORIGEM DO BUMBA-MEU-BOI
Uma das prováveis origens da festa seria na Europa do século 16, na península ibérica. Havia um conto ibérico de enredo muito semelhante ao da história da lenda do bumba-meu-boi difundida no Brasil. Trazida pelos colonizadores portugueses, a história no Brasil ganhou aspectos da cultura indígena e africana.
No nordeste, a história do bumba-meu-boi foi inspirada na lenda da Mãe Catirina e do Pai Francisco (Chico). Nesta versão, Mãe Catirina e Pai Francisco são um casal de negros trabalhadores de uma fazenda. Quando Mãe Catirina fica grávida, ela tem desejo de comer a língua de um boi.
Empenhado em satisfazer a vontade de Catirina, Chico mata um dos bois do rebanho, que, no entanto, era um dos preferidos do fazendeiro. Ao notar a falta do boi, o fazendeiro pede para que todos os empregados saiam em busca dele. Eles encontram o boi quase morto, mas com a ajuda de um curandeiro ele se recupera.
Em outras versões, o boi já está morto e, com o auxílio de um pajé, ele ressuscita. A lenda, dessa maneira, está associada ao conceito de milagre da igreja católica, ao trazer de volta o animal.
Ao mesmo tempo, mostra a presença de elementos indígenas e africanos, tal como a cura pelo pajé ou curandeiro e a ressurreição. A festa do Bumba meu boi é celebrada para comemorar esse milagre.
O cazumbá é um personagem do bumba-meu-boi, do sotaque da baixada ou de pindaré. Nem homem, nem mulher, nem animal, ele está entre a magia e o lúdico; fusão dos espíritos dos homens e animais, cercado de magia e responsabilidades com o boi.
No bumba-meu-boi do Maranhão, em meio a um enredo de temática rural, que mistura boi, amo, vaqueiros, rapazes e índios, situa-se como um ser fantástico que assusta Pai Francisco quando este rouba o boi para lhe tirar a língua e satisfazer o desejo de grávida de sua mulher, Catirina.

Fonte: FolhaPress/SAMARTONY MARTINS