Cultura
Domingo, 28 de abril de 2024

‘Dez por Dez’ é sensível, mas poderia desconfiar das generalizações

PAULO BIO TOLEDO

“Dez por Dez” é uma peça-filme dirigida pelos irmãos Guilherme e Gustavo Leme a partir de projeto do cineasta americano Neil Labute. Dez atrizes e atores apresentam quantidade igual de breves cenas nas quais personagens nada excepcionais contam algo sobre sua vida.
Todos olham diretamente para a câmera e falam durante mais ou menos dez minutos, sem cortes ou edição de imagem, como se conversassem com um interlocutor invisível, cujos olhos são as lentes da câmera -ou, talvez, como se o interlocutor fosse o público, do outro lado da tela. Tais características fazem com que a obra penetre um impactante espaço híbrido, ali entre o vídeo e o teatro.
Com uma ou outra exceção, não há nenhuma história fantástica sendo narrada. Pelo contrário, são fragmentos de vida comum. A maior parte das histórias são triviais e estão dispostas sem nenhum encadeamento aparente. Apesar disso, causam um tipo de interesse magnético. O mérito é muito do elenco, que defende as personagens com alta sensibilidade, expondo segredos banais de vidas dolorosamente ordinárias com um tom de forte excepcionalidade e interesse.
Um exemplo é o episódio protagonizado por Denise Fraga, uma das maiores atrizes em atividade no país. Com pequenos gestos cheios de significado e uma atenção intensa para os sentidos do que diz, ela conjuga rigoroso exame crítico de seu papel com uma comovente conexão com as dores da personagem -o que faz lembrar de seu último trabalho nos palcos, “Eu de Você”. A mulher de 50 anos interpretada aqui por Denise Fraga vive uma intensa crise melancólica e o vazio existencial da personagem ganha uma dimensão de grandeza profunda, com implicações sociais, no modo como a atriz a representa.
Mesmo convivendo com toda essa sensibilidade criativa, a adaptação brasileira de “Dez por Dez” intervém timidamente no material de Neil Labute.
A equipe parece acreditar que a vida cotidiana elaborada pelo texto do diretor estadunidense é um instantâneo de certa universalidade humana, com seus sofrimentos e alegrias fugazes; egoísmo e ressentimento; desejos e fracassos comuns a toda a espécie.
As localidades escolhidas e preparadas pela filmagem brasileira enfatizam essa contextualização genérica: os planos da fotografia em preto e branco de cada episódio criam ambientes abstratos, difusos, com fundo desfocado e sem nenhuma marcação específica: um bar qualquer, um escritório dentre milhões de outros, uma casa genérica.
Mas se é verdade que aqueles seres parecem reconhecíveis para nós, não é porque existe uma sentimentalidade universal que une a humanidade. Se olharmos bem, as personagens da peça parecem saídas diretamente de filmes e séries produzidos nos Estados Unidos. Muito provavelmente, são tipos reconhecíveis mais devido a hegemonia simbólica que esse mercado possui sobre nós do que por se aproximarem de algo como as formas essenciais do comportamento humano.
A montagem de “Dez por Dez” parece considerar natural essa transposição direta entre o cotidiano retratado por Neil LaBute e o brasileiro. A ponto de não achar necessário assinalar a especificidade do ambiente dos EUA ou retrabalhar as personagens, buscando conexões locais para os dilemas narrados por elas.
Apesar da alta sensibilidade que o projeto mobiliza, também há pouca disposição autoral dos criadores brasileiros e um tipo de generalização humanista que poderia ser observada com mais desconfiança.

Fonte: FolhaPress