CAROLINA MORAES– Infortúnios nos ensaios, acidentes no palco e textos clássicos carregados de lendas e maldições. Nem sempre as intrigas da coxia são mostradas no palco, mas dois espetáculos virtuais, baseados em obras de William Shakespeare, invertem essa dinâmica e fazem desses bastidores o seu enredo. São elas “Macbeth 2020”, de Luis Lobianco com atores convidados da Cia. Buraco Show, e “Off Hamlet”, da Cia. Práxis Arte e direção de Erick Gallani.
É extensa a lista de personagens em quem Luis Lobianco se desdobra em sua releitura de “Macbeth”, todos arquétipos facilmente encontráveis nos camarins -ele é Hélio de Gales, apresentador de um documentário, Little John, um ator inglês, Rejane Galdán, uma diretora de teatro contemporâneo, Melchiades Veronese, um ator carioca, Carlo Strazzer, paulista e membro de companhias que montavam textos clássicos, além da diva portuguesa Brigitte Fausta e de Su Weismann, uma performer que mora em Nova York.
O que eles têm em comum? Todos já encenaram esse sombrio texto de Shakespeare, e contam suas histórias amaldiçoadas numa peça online que brinca com a linguagem do “mockumentary”, ou documentário falso.
“Sempre tive vontade de encenar ‘Macbeth’, uma peça maravilhosa, mas nunca me imaginei fazendo”, diz Lobianco. “Naquele momento [de pandemia], naquela distopia toda, eu pensei ‘Quer saber? O mundo está acabando mesmo, eu posso fazer o que eu quiser'”, afirma o ator.
A ideia surgiu a partir da montagem de “Parece Loucura Mas Há Método”, da Armazém Companhia de Teatro, de que Lobianco participou. Na peça feita pelo Zoom, nove personagens do bardo inglês eram “cancelados” pelos espectadores numa espécie de batalha virtual.
Pesquisando sobre os vários protagonistas criados por Shakespeare, ele chegou às histórias de bastidores de “Macbeth”, tida como uma peça maldita e envolta em casos trágicos e cômicos.
“Muita gente atribui ao caráter sombrio da peça, essa noite que não tem fim, com muita morte e sangue, ao fato de Shakespeare estar confinado, com medo, escrevendo”, diz Lobianco, sobre a hipótese de que o autor teria escrito a peça durante a peste bubônica.
“Ao mesmo tempo, eu não queria botar mais tragédia na roda. Tentei ver algum aspecto mais cômico ou curioso dessa história e cheguei a esses relatos de várias pessoas, ao longo dos 400 anos de existência do texto.”
No palco, a diva portuguesa de “Macbeth 2020” já foi picada por uma lacraia fazendo o papel de Lady Macbeth. Já a diretora de teatro contemporâneo, que acha essas maldições uma grande besteira, viu toda a sua equipe se acidentar durante a montagem da peça -mas continua a defender que nada disso tem a ver com o texto, claro.
Além de trazer essas personas típicas do meio teatral, a peça foi gravada no Teatro Poeira, no Rio de Janeiro, o que a torna também uma homenagem ao setor, gravemente afetado pela pandemia de coronavírus. O figurino também é artesanal, “quase mambembe”, diz Lobianco -a caracterização do ator é feita com perucas de papel, por exemplo.
“Pesquisando sobre Shakespeare, trazendo essas histórias que são do universo do teatro e voltando com a minha equipe para esse espaço com a Lei Aldir Blanc, a peça é uma homenagem à nossa classe. Estamos precisando de reconhecimento, carinho, esperança, de rir de nós mesmos”, afirma.
Segundo o diretor Erick Gallani, a ideia de trabalhar com um texto de Shakespeare é anterior à pandemia de coronavírus -começou em 2015. Mas foi o formato digital e gravado da peça, impulsionado justamente pela impossibilidade de fazer espetáculos presenciais, que deu a cara de “Off Hamlet”.
Cena da peça virtual ‘Off Hamlet’, com direção de Erick Gallani Divulgação Homem e mulher brancos aparecem falando em cenário de teatro; homem branco d camiseta verde aparece filmando o diálogo com uma câmera nas mãos ** “O que me interessa é debater como o audiovisual pode ser teatral”, afirma Gallani. O espetáculo da Cia. Práxis Arte mostra uma série de bastidores de uma montagem da peça de Shakespeare, com discussões sobre a própria obra e os personagens do autor inglês.
Assim como em “Macbeth 2020”, “Off Hamlet” se vale de técnicas de corte e de edição do audiovisual e mantém uma roupagem documental para criar essa espécie de making of do espetáculo.
No registro fílmico desse processo criativo, no entanto, eles mantém a presença das artes cênicas em outros elementos.
O diretor decidiu, por exemplo, não inserir uma trilha sonora e manter o barulho do galpão em que gravaram a peça integralmente. Gallani também faz uma leitura do próprio programa da peça durante a gravação.
“‘Hamlet’ é um texto que dá possibilidades inúmeras do que você quiser, e nesse caso estou discutindo o YouTube”, diz ele, que defende que a ideia é trabalhar com a mediação da tela e das mídias digitais na apresentação de um trabalho cênico.
Fonte: FolhaPress