Cultura
Terça-feira, 5 de novembro de 2024

Filme ‘A Febre’ nos faz mergulhar em Brasil que dificilmente alcançamos

CÁSSIO STARLING CARLOS
FOLHAPRESS – O índio, no cinema da matriz de Hollywood, foi durante décadas o inimigo, o selvagem que deveria ser abatido, a natureza em estado bruto à qual o homem branco se impunha. No nosso cinema, o índio não ameaça, já aparece romantizado, folclorizado, idealizado como bom selvagem ou é exibido como resíduo histórico, com pouca visibilidade e nenhum nome.
“A Febre” não busca essa suposta origem perdida, nem opta pelo discurso de denúncia de injustiças. Em seu primeiro longa de ficção, Maya Da-Rin retorna ao território de seus primeiros trabalhos documentais e nos faz mergulhar num Brasil que dificilmente alcançamos.
Avesso ao padrão Globo Repórter, o olhar documental de Da-Rin, intacto mesmo na forma da ficção, não faz sobrevoos, não oferece visões aéreas e idílicas das nossas verdes matas. Sua perspectiva é de imersão nos espaços, nas condições de vida, nos modos de ver.
Por isso, a entrada de “A Febre” no catálogo da Netflix tem a vantagem de nos mostrar um Brasil que a gente não vê ou prefere deconhecer. Mas tem a desvantagem de concorrer com a ligeireza das narrativas que ocupam tempo demais de nossa atenção volátil.
Justino, papel de Regis Myrupu, e sua filha, Vanessa, vivida por Rosa Peixoto, não são representados como outros. Eles estão integrados nessa sociedade que se enxerga como branca, foram assimilados via trabalho, vivem em espaços urbanos, têm acesso à educação.
Ao mesmo tempo, por meio da língua nativa, eles se comunicam entre si, enquanto usam o português para falar com brasileiros como nós, que somos outros. Essa duplicidade reaparece na interpretação que o irmão de Justino faz do animal que ronda a vizinhança. Segundo ele, essas criaturas pertencem a dois mundos, vivem lá e cá. Seu modo de existência não exclui outros, não se reduz ao outro e permanece inassimilável.
A febre que acomete Justino é sintoma de alguma doença, alegoria do mal-estar de viver numa sociedade que só o identifica como “índio” ou expressão enviesada de saudade da filha que está de partida?
Em vez de dar respostas simples e incompletas, “A Febre” nos atrai para os outros mundos da existência de Justino, o das origens no espaço da natureza e o da exploração do trabalho, o do pensamento mágico e o da existência sem horizontes, o de um Brasil que não é mais e o de um país que não será.