LUCAS BRÊDA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No Brasil do início dos anos 1970, quando a indústria fonográfica vivia provavelmente seu auge, um comentário informal entre os executivos de gravadoras era que um artista só poderia ser avaliado em seu terceiro disco. Isto é, teriam o investimento em pelo menos dois álbuns até que dessem retorno à gravadora.
Cinco décadas depois, há uma inversão nesse modelo. Aos 17 anos, o funkeiro MC Niack emplacou duas músicas na cobiçada primeira posição de mais tocadas do Brasil no Spotify. Tudo feito e gravado em casa, em colaboração com DJs de outras partes do país. Meses depois, ele foi contratado pela Warner, uma das grandes gravadoras do mundo, com braço no Brasil.
“A questão de investimento a longo prazo praticamente acabou, né?”, pergunta Alex Schiavo, que trabalhou por 25 anos na Sony Music, da qual foi presidente, e hoje é diretor artístico no selo Altafonte. “Basicamente, se testa uma música, vê como ela se sustenta nesse ‘chart’ e, se não render, tchau. E qualquer coisa que entre nesse ‘chart’ que não seja de uma ‘major’, o mercado vai atacar para pegar aquela música, aquele artista.”
Marcelo Soares, presidente da Som Livre, uma das três maiores gravadoras do país, diz que os selos, hoje, são muito mais desafiados. “A tecnologia digital trouxe uma democratização dos meios de produção. Se você voltar lá atrás, no mercado físico, as gravadoras eram guardiãs de um mercado, pelo qual você precisava passar para lançar sua música. Em determinado momento, ficou tão fácil gravar e lançar sua música que para uma gravadora continuar relevante ela precisou demonstrar um valor muito maior.”
Segundo Schiavo, a grande mudança na indústria é a quantidade de dados disponíveis atualmente, tanto das plataformas quanto de redes sociais. Isso aconteceu com a transformação no modelo de negócios, do físico para o digital, processo que se consolidou na última década, com a ascensão do streaming.
A lista de mais tocadas do Spotify, ele diz, “funciona como ações na Bolsa”, com “setinhas indicando se a música está subindo ou descendo”. “As grandes gravadoras começaram a ser cobradas por posições nesse ‘chart’. Elas estão num jogo de market share, porque quando precisam renovar acordo com as plataformas, a cada dois anos, ganham adiantamento e eles são dados pelo valor de mercado que elas têm.”
Na segunda metade do século passado, os selos detinham os estúdios, produtores e engenheiros de som, além da cara estrutura de distribuição –pôr os produtores nas prateleiras das lojas país afora. Hoje, é muito mais fácil gravar em casa e mostrar o trabalho pelas redes sociais.
No último Grammy, Billie Eilish, de 18 anos, saiu consagrada com um disco gravado no quarto de casa, produzido pelo irmão, que levou o troféu de melhor produtor. Ou seja, na visão do prêmio considerado o mais importante da indústria, um álbum caseiro foi mais bem escrito, interpretado e produzido do que os trabalhos feitos com compositores e produtores caros e renomados, nos equipados estúdios de Los Angeles.
Uma pesquisa divulgada pela Associação Brasileira da Música Independente, a ABMI, no ano passado revela que os independentes têm relevância pelo menos equivalente aos artistas das multinacionais. Considerando o Top 200 diário do Spotify, 53,5% são independentes, enquanto 46,5% vêm das grandes gravadoras.
É claro que a estrutura de distribuição e propaganda –muitas vezes com potencial internacional– das multinacionais ainda têm grande importância, mas diminuiu a dependência dos artistas em relação aos selos. Décadas atrás, graças aos altos investimentos, era considerado natural que eles possuíssem os fonogramas. Mas essa relação, atualmente, vem provocando reflexões.
Kanye West foi ao Twitter comparar os contratos com gravadoras a um modelo de escravidão. Taylor Swift, hoje independente, viu suas gravações ficarem sob posse de Scooter Braun, magnata da indústria e desafeto da cantora. Ele comprou o Big Machine Label Group, selo detentor dos direitos sobre as músicas dela, o que fez Swift considerar regravar todo o próprio catálogo.
Carlos Mills, presidente da ABMI, diz que hoje o ambiente é muito mais favorável aos independentes. “Mas é uma faca de dois gumes. Quando você tem os meios de produção mais acessíveis e uma quantidade maior de produtos, aumenta a competição. Hoje, todo mundo tem acesso à prateleira da loja, que é infinita. São 30 mil a 40 mil músicas por dia subindo nas plataformas digitais.”
Essa descentralização da produção e principalmente da distribuição também proporcionam o surgimento de serviços diversos. Existem distribuidoras como a ONErpm, um serviço que pode ser usado por qualquer artista, quase sem operação humana. Há modelos também como o da Altafonte, no meio do caminho entre uma gravadora e uma distribuidora.
O selo espanhol –onde hoje trabalha Schiavo–, casa de nomes como Gilberto Gil e Criolo, entre muitos outros, tem curadoria e faz adiantamentos e investimentos, como uma gravadora tradicional. Mas, em contrapartida, não detém os fonogramas e oferece contratos financeiramente mais generosos aos artistas –algo possível, diz Schiavo, pelo baixo custo operacional quando comparado ao de uma multinacional.
Nesse contexto, não surpreende que, no fim do ano passado, a Globo tenha iniciado um processo de venda da Som Livre, uma das maiores gravadoras do Brasil. Criada em 1969 para produzir e pôr à venda as trilhas de novelas, o selo já lançou gigantes como Tim Maia, Cazuza, Djavan e Rita Lee.
“Antes, as gravadoras eram absolutamente necessárias”, diz Marcelo Soares, o presidente da Som Livre, que no Brasil só é menor do que as multinacionais Warner e Universal, e tem titãs do streaming como Marília Mendonça e Wesley Safadão no catálogo. “Agora, ela só se torna necessária se mostrar um valor no trabalho.”
Soares acredita que as gravadoras hoje conseguem mostrar esse diferencial. “Especialmente na parte de estruturação e planejamento da carreira e de marketing, as gravadoras ainda têm um valor muito grande. Basta observar que existem artistas grandes que não estão em grandes gravadoras, mas ao mesmo tempo os que continuam nelas continuam sendo os mais vendidos e mais ouvidos, não só no Brasil mas no mundo. Mesmo não sendo obrigados, eles têm percebido que existe esse valor.”
Uma das vantagens das multinacionais é a capacidade de negociar acordos mais rentáveis com as plataformas de streaming. Mas mesmo isso, segundo Carlos Mills, da ABMI, está mudando. Ele cita a Merlin, empresa que reúne independentes de todo o mundo para poder negociar de maneira unificada.
“Com isso, os independentes conseguem ter um tamanho global maior que a Warner, e negociar um valor em pé de igualdade com as ‘majors’. Quase todos os independentes utilizam os acordos da Merlin. Caso isso não existisse, seria impossível negociar com tantas empresas no mundo.”
A pesquisa da ABMI também mostra uma tendência de aumento da porcentagem de independentes entre os mais ouvidos. Com a mudança do físico para o digital, as gravadoras já perderam o monopólio do mercado. Mas, agora, estão ameaçadas de perder também a hegemonia sobre ele.
“Novos artistas já nasceram independentes, subindo vídeo no YouTube, dando seu próprio jeito”, diz Alex Schiavo. “Já sabem como ganham dinheiro. E a linguagem em rede social tem que ser em primeira pessoa –não adianta ser feita por um departamento de marketing. Essa geração tem o controle total, sabe o que quer. E sabe que não precisa estar na multinacional.”
Cultura
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