LUCAS BRÊDA
FOLHAPRESS – Quando as cópias do disco “McCartney” chegaram à imprensa em 1970, elas trouxeram um aviso -Paul McCartney está fora dos Beatles. A saída de um dos pilares de uma banda gigante significava o fim do grupo, sofrendo com relações internas que já vinham se deteriorando havia anos.
“McCartney”, primeiro disco assinado por Paul sozinho, saiu meses antes de “Let It Be”, último álbum lançado pelos Beatles, e foi recebido com frieza. Simples, quase acústico e caseiro, punha o músico numa posição quase diametralmente oposta a de seu ex-parceiro, John Lennon, que àquela altura lançava “Plastic Ono Band”, um álbum roqueiro cheio de temas profundos e muito mais desafiador do que a incursão pessoal de Paul.
Ao longo dos anos, a percepção sobre “McCartney” foi mudando. Seguido por “McCartney II”, de 1980, o disco hoje é encarado como um dos mais interessantes da carreira solo do ex-beatle, tendo inaugurado a trilogia que ganha um fecho agora, 50 anos depois de ter iniciado.
“McCartney III” chega às plataformas de streaming nesta sexta (18), recuperando a espontaneidade e o espírito experimental de 1970 e 1980, agora adequados aos tempos de isolamento social.
No novo álbum, assim como nos outros dois da trilogia que leva o sobrenome de Paul, ele ficou encarregado por praticamente todos os instrumentos. Também gravou e compôs as músicas sozinho, em sua fazenda, e todos foram feitos em meio ao verão inglês. Se nos dois discos anteriores Paul se isolou por conta própria, agora ele foi obrigado a ficar sozinho devido ao coronavírus.
“Vivia uma vida de confinamento em minha fazenda com minha família e ia para meu estúdio todos os dias”, ele disse em comunicado. “A cada dia, eu começava a gravar com o instrumento no qual escrevi a música e, gradualmente, punha tudo em camadas. Era muito divertido. Era sobre fazer música para você mesmo em vez de fazer música como um trabalho. Então, só fiz coisas que eu gostava de fazer. Não tinha ideia de que isso ia resultar num álbum.”
“McCartney III” foi motivado por uma composição de 1990 revisitada, que acabou gerando “Long Tailed Bird”, faixa de abertura do disco. A música traz uma introdução e se desenrola com Paul soltando frases e perguntas soltas por cima de um violão abafado, uma guitarra suja e bateria esparsa.
Representa um distanciamento de “Egypt Station”, disco mais recente do artista, que em 2018 chegou ao topo da parada de discos da Billboard -feito que ele não atingia havia 36 anos, desde “Tug of War”, de 1982. Esteticamente, contudo, é um álbum alinhado com o que Paul faz há décadas em cima do palco, soando mais como uma extensão do seu trabalho com banda do que propondo algum tipo de evolução estética.
Em “McCartney III”, Paul foge de seus discos comerciais como não fazia há anos. Em “Deep Deep Feeling”, por quase oito minutos, as vozes se sobrepõem enquanto um piano demarca a melodia, com uma levada quebrada e um refrão em que ele canta, em falsete, que às vezes queria que a emoção fosse embora. A música remete a “Every Night”, de “McCartney”, da letra “todo dia só quero sair, sair da minha cabeça”.
Se “McCartney” trazia algumas das baladas mais bonitas de Paul -como “Maybe, I’m Amazed” e “Junk”- e explorava o tipo de gravação hoje chamado de lo-fi, “II” era carregado de sintetizadores. Ainda que os teclados já estivessem inseridos para encorpar a sonoridade grandiosa que Paul desenvolveu ao longo dos anos 1970 com os Wings, em “II”, eles são usados como ponto de partida para as melodias e batidas.
Na época em que saiu, em 1980, “McCartney II” foi recebido com críticas negativas, mas hoje foi redescoberto por DJs e artistas indie e se tornou uma espécie de clássico cult. De muitas maneiras, aquele disco anunciava a inserção pesada da música eletrônica no pop, um fenômeno que se desenrolou ao longo dos anos 1980.
Tanto a estética lo-fi quanto a música eletrônica estão em alta nos últimos anos. E não é à toa que duas das três músicas mais ouvidas de Paul no Spotify atualmente são uma de “McCartney” e outra de “McCartney II”.
Com o mesmo nome, mas estéticas diferentes, os discos deixam claro que a ideia de Paul com essa trilogia vai além de alcançar um tipo específico de som. Em “III”, há baladas cândidas de violão -como “The Kiss of Venus”-, mas também um blues rústico -“Lavatory Lil”- e uma faixa que beira o R&B, “Deep Down”, com o que parece um uivo na introdução.
Nesse sentido, “III” está muito mais próximo de “McCartney” e até mesmo de outro disco bucólico do começo dos anos 1970, “Ram”, feito com a mulher Linda McCartney. Singela, “Pretty Boys” parece trazer memórias dos tempos de beatlemania -os “garotos bonitos”, “objetos de desejo”, “você os pode olhar, mas melhor não tocar”- como fizera “Early Days”, no disco “New”, de 2013.
Em 1970, enquanto os olhos da opinião pública estavam voltados a Lennon e ao novo rock que surgia -mais expansivo, com bandas como o Led Zeppelin-, Paul cantava o alívio de se livrar da megalomania da época dos Beatles. Em 1980, buscava novas linguagens para se encontrar de um jeito pessoal e artístico numa carreira já consagrada.
Neste ano, Paul dá um tempo de tocar o mesmo repertório para as mesmas multidões em suas turnês por estádios para um novo passeio interno. Se não soa tão inventivo quanto nas situações anteriores, mas, aos 78 anos, ele pelo menos parece lidar melhor com os monstros internos. “Agora você está tomado por suas ansiedades”, canta em “Find My Way”. “Me deixe o ajudar a sair dessa, me deixe ser seu guia.”
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