LUCAS ALONSO
BAURU, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil ainda não tinha alcançado a marca de 2.500 casos confirmados de coronavírus quando a Índia decretou o maior confinamento da história.
Em 24 de março, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, determinou que 1,3 bilhão de habitantes de “todos os distritos, todas as ruas, todas as vilas” do segundo país mais populoso do mundo, atrás apenas da China, estavam proibidos de sair de casa.
À época, a Índia registrava 536 casos da Covid-19 e 10 mortes, números baixos para as dimensões do país. Especialistas estimavam que a cifra de infecções chegaria a 1 milhão em maio.
A Índia de fato atingiu o valor, mas em 17 de julho, quando se tornou o terceiro país no mundo a superar 1 milhão de contágios pelo coronavírus, atrás dos Estados Unidos e do Brasil.
Outra projeção, desta vez feita por pesquisadores do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), divulgada no começo de julho, acendeu novos alertas sobre os efeitos da pandemia no país: até o final de março de 2021, a Índia vai liderar o ranking de casos diários da Covid-19 no mundo.
O MIT projeta 287 mil novos contágios por dia, mais que o triplo da previsão para os Estados Unidos, o segundo colocado da lista.
Para chegar a essa conclusão, os autores do modelo matemático levaram em conta aspectos como capacidade de realizar testes, percepção de risco de contaminação e reação dos governos à pandemia em 84 países.
O Brasil não aparece na lista. Apesar de estar atualmente em segundo lugar no número de casos e mortes pela Covid-19, o país foi considerado pelos pesquisadores, junto com a China, uma “notável exceção”, por não apresentar dados confiáveis sobre os índices de exames de detecção do vírus.
Na Índia, a reação rápida trouxe ganho de capital político ao primeiro-ministro. Segundo levantamento semanal da Morning Consult, Modi é, desde o início da pandemia, o líder com o maior índice de aprovação em todo o mundo: 77%.
Na lista com dez chefes de Estado, Jair Bolsonaro é o sexto colocado, com 47%, e o americano Donald Trump, o oitavo, com 39%.
Na avaliação da brasileira Karin Costa Vazquez, diretora do centro de estudos africanos, latino-americanos e caribenhos na O.P. Jindal Global University, na Índia, em contraste com Bolsonaro e Trump, Modi apostou na chamada “diplomacia da saúde” para projetar uma imagem positiva para o mundo.
Ela cita o ministro das Relações Exteriores indiano, que, durante reunião virtual do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), afirmou que seu país tem prestado assistência médica a 85 países.
Brasil e Estados Unidos, por exemplo, receberam doações indianas de hidroxicloroquina, medicamento usado no combate à malária que foi propagandeado por Bolsonaro e Trump como possível tratamento contra a Covid-19, embora não haja nenhuma evidência científica de sua eficácia.
Para Vazquez, no plano doméstico, porém, a política de Modi para o enfrentamento à pandemia foi “muito restritiva e pouco planejada”.
“No início, faltaram ações mais detalhadas para aumentar os serviços públicos de saúde, bem como medidas de alívio econômico para empresas e grupos em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica.”
Como resultado das restrições abruptas, milhões de trabalhadores perderam os empregos, situação não muito diferente da de outros países pelo mundo que vêm enfrentando graves crises econômicas devido ao coronavírus.
Mas, na Índia, que em abril, logo após o início do “lockdown”, chegou a registrar 122 milhões de desempregados, esse cenário teve efeitos pesados sobre os números da pandemia no país.
“Sem qualquer economia pessoal e orientação adequada do governo, esses trabalhadores enfrentaram insegurança alimentar e dificuldades que levaram migrantes e famílias a caminhar milhares de quilômetros para chegar às suas aldeias”, afirma um relatório sobre as políticas adotadas pelo governo indiano produzido pelo Instituto de Saúde Global da Universidade Duke, nos EUA.
Estima-se que entre 2 milhões e 10 milhões de trabalhadores indianos se viram nessas condições. Muitos morreram enquanto tentavam voltar para casa, e boa parte dos que conseguiram acabaram ajudando a disseminar o coronavírus em suas aldeias de origem.
A migração para o interior elevou o número de novos casos na Índia. No domingo (26), o país registrou mais de 50 mil casos diários, estabelecendo um novo recorde na curva ascendente de infecções pelo coronavírus.
Para Lía Rodríguez de la Vega, secretária-geral da Associação Latino-Americana de Estudos da Ásia e da África (Aladaa), a resposta econômica do governo indiano, apesar de grande, num pacote de US$ 23 bilhões (R$ 118, 3 bilhões) para tentar atingir 800 milhões de pessoas, “foi insuficiente para atender as necessidades dos mais pobres”.
“No que diz respeito especificamente ao setor da saúde, parece haver três problemas principais: baixos níveis de testagem, falhas na implementação para conter a disseminação durante a quarentena e impactos significativos em outros serviços de saúde, cuja infraestrutura é fraca”, analisa.
Para milhões de indianos, cuidados básicos de prevenção como lavar as mãos e manter o distanciamento físico são uma tarefa impossível.
A ausência de saneamento básico aliada à altíssima densidade populacional cria um ambiente propício para disseminação de doenças contagiosas, configurando uma crise de saúde que antecede e é agravada pela Covid-19.
Até agora, a Índia tem mantido índice de letalidade relativamente baixo, com 24 mortes a cada 1 milhão de habitantes. O Brasil, por exemplo, 12º nesse índice, registra 410 mortes/1 milhão.
As teorias para explicar essa aparente contradição são várias, segundo Vega.
Segundo a analista, alguns a atribuem à efetividade da quarentena, argumento do qual discorda, e outros, à juventude da população. Ela também destaca a possibilidade de que mortes ocorridas nos domicílios não estejam sendo devidamente contabilizadas, além de óbitos registrados com diagnósticos equivocados.
Já o Ministério da Saúde indiano diz ter “intensificado a infraestrutura de hospitais para gerenciar os casos de maneira adequada e eficaz”. “A preparação incluiu o fornecimento de suporte de oxigênio, UTI e instalações de ventilação”, afirmou a pasta, em um comunicado no início do mês.
Para Vazquez, porém, o sistema de saúde da Índia tem uma “natureza privada e assimétrica” que dificulta um plano uniforme para contenção da Covid-19.
“Isso gera críticas quanto à falta de acesso equitativo a cuidados de saúde de qualidade para castas e classes mais baixas, mulheres, bem como uma forte divisão cidade-campo.”
Conta a favor de Modi, porém, principalmente na comparação com líderes populistas como os do Brasil e dos EUA, o fato de que o primeiro-ministro indiano nunca minimizou a gravidade da pandemia.
Internacional
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