No Mundo
Segunda-feira, 31 de março de 2025

Drones dominam frentes de batalha na Ucrânia, e ninguém está a salvo na superfície

O piloto de drone ucraniano localiza um alvo: um soldado do Exército russo em uma moto, andando por uma estrada de terra próxima a Toretsk, uma das principais frentes de batalha no leste da Ucrânia. O soldado-piloto persegue o motociclista com um FPV, um drone kamikaze que pode levar até 3 quilos de explosivos. O ucraniano se orienta por três telas e usa um joystick para movimentar o FPV (sigla em inglês para first person view, visão em primeira pessoa).
A Folha de S.Paulo acompanha a ação de Yenot (nome de guerra), 36, integrante da 93ª Brigada. “Acho que o cara vai entregar munição em alguma posição russa, mas é suicida estar exposto assim, nesse lugar”, comenta o piloto com a reportagem.
A câmera do FPV mostra o drone se aproximando da moto, até chegar bem perto. De repente, a imagem some, e chuviscos tomam a tela. O drone tinha explodido. Imagens em outra tela, da câmera de um drone de vigilância Mavic, mostravam a explosão.
O soldado russo, porém, não tinha morrido. Ele cai da moto e sai cambaleando.
Yenot, então, acende um cigarro, toma um gole do energético No Stop, combustível das tropas ucranianas, e ajeita seus óculos de visão imersiva. Dois soldados da unidade decolam outro FPV da posição para “concluir a missão”.
O segundo drone se aproxima do soldado russo, e a tela mostra enquanto ele tropeça e cai no chão. Então, deitado, o russo apoia a cabeça no braço direito. Ele parece saber seu destino. Com a testa e a barba ensanguentados, encara fixamente a câmera do drone, cada vez mais perto.
A tela se enche de chuviscos. O Mavic mostra a explosão e o russo morto, com sua moto alguns metros à frente.
“Estou vendo que você está fazendo um julgamento moral. Mas o russo não se rendeu. É a guerra. A guerra é assim”, diz Yenot à reportagem, de dentro de seu esconderijo, a cerca de três quilômetros das posições inimigas.
Os FPVs são os snipers (atiradores) da Guerra da Ucrânia. São muito mais precisos e letais do que os atiradores humanos. Segundo comandantes, neste conflito, os drones matam mais do que todas as outras armas juntas metralhadoras, morteiros, tanques e obuses. Hoje, os veículos aéreos não tripulados são responsáveis por mais de 70% das mortes no campo de batalha. Em alguns locais, até mais. E mais de 95% dos 1,5 milhão de drones comprados pelas forças ucranianas no ano passado foram fabricados no país.
Yenot (que significa guaxinim, em ucraniano) anota em um caderninho seus 200s, gíria militar para soldados que matou, do mesmo jeito que presos calculam seus dias na cela com pauzinhos. Ele já havia acumulado 24 desde julho de 2024. O soldado russo na motocicleta foi o 25º pauzinho.
Para ele, comparar a atual guerra de drones com um videogame é um estereótipo. É uma batalha bem diferente daquela que se expandiu no fim dos anos 2000, com pilotos americanos sentados em escritórios no estado de Nevada, que matavam afegãos a milhares de quilômetros enquanto tomavam seu café Starbucks.
O ucraniano já foi vítima de um sniper. Foi atingido no rosto por um atirador russo em 2015, em Donetsk, antes da era letal dos FPVs. Sobreviveu, com uma cicatriz. Ele fica em uma “blindagem”, como chamam um esconderijo subterrâneo fortificado de madeira, em meio a ruínas de um vilarejo destruído pela guerra. Já chegou a passar três semanas seguidas nesse local. Muitos morrem ao terem a posição descoberta pelos drones de observação russos.
Nessas condições, até fazer as necessidades fisiológicas é uma missão de alto risco. A reportagem informou que precisava ir ao “banheiro”, que ficava em uma casa destruída ao lado do esconderijo. Após checar uma tela, um soldado ucraniano informou: “Não dá, tem um drone inimigo sobrevoando.” Passados 15 minutos, avisou: “O céu está limpo, pode ir, mas corre.”
É preciso correr com capacete e colete à prova de balas e se equilibrar para não cair dentro do buraco cercado de tábuas de madeira que funciona como banheiro. E fazer tudo rápido, pois sempre há o perigo de ser localizado por um drone. Ouvem-se explosões o tempo todo.
Os drones são a aposta da Ucrânia para resistir à Rússia, apesar da inferioridade em número de soldados e forças aéreas convencionais. Mesmo dependendo de munição dos países ocidentais, que é cara e sempre chega em quantidade insuficiente, os ucranianos vêm segurando o avanço inimigo no leste do país.
Os russos também aderiram de forma maciça aos drones. Eles lançam enxames de FPVs no front a US$ 400 (cerca de R$ 2.200) a unidade, são relativamente baratos. Para ataques contra as cidades maiores, como Kiev, utilizam os iranianos Shahed, que carregam ogivas de 50 quilos e viajam até 1.000 quilômetros. Cada um custa cerca de US$ 50 mil (R$ 285 mil).
A eficiência desses aparelhos pode ser comprovada pelos profissionais de saúde na guerra. Segundo Vasilina, 23, uma paramédica da 68ª Brigada, na região de Pokrovsk, 90% dos feridos e mortos ucranianos que ela recebe hoje são vítimas de FPVs. “Os drones são muito precisos. Os soldados sofrem concussões muito graves, ferimentos por estilhaços, e, quando saem dos buracos, são alvo fácil.”
Os buracos a que ela se refere praticamente substituíram as trincheiras tradicionais. O front é coalhado de “posições”, semelhantes a tocas de raposa cavadas pelos soldados, que abrigam de 2 a 5 homens.
A função da infantaria é, basicamente, não deixar os russos tomarem mais terra. Eles já ocupam 20% do território do país, nas províncias de Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporíjia (além da península da Crimeia, anexada em 2014).
Os drones funcionam como a primeira linha de ataque e defesa da infantaria. Entregam comida, remédios e munições nos buracos, fazem vigilância e “caçam” posições e soldados inimigos.
Além disso, impossibilitam o trabalho dos paramédicos. Desde metade do ano passado, eles não vão mais até o campo de batalha evacuar ou tratar feridos. São alvos preferenciais das forças russas. Os paramédicos dependem dos blindados que levam armas ao front para trazer os soldados. Mas isso leva tempo.
Na sangrenta batalha de Bakhmut, em 2022 e 2023, havia muitos morteiros, mas não drones. “Os paramédicos conseguiam evacuar os soldados feridos em 2 horas, íamos de quadriciclo”, conta Vasilina. “Agora, como é impossível chegar até as posições, o resgate leva de 2 a 5 dias”. O último motorista de ambulância que foi até a frente de batalha em Pokrovsk, em junho de 2024, morreu alvejado por um FPV. “Não há mais evacuação de emergência, por isso aumentou muito o número de mortos.”
O paramédico Andrii relata que, no verão, com as temperaturas mais altas, os cadáveres já estavam com vermes quando eles finalmente conseguiam chegar até a posição. “Muitas vezes, pessoas com quem havíamos tomado um chá alguns dias antes”, diz. “É uma guerra transparente. Somos visíveis em qualquer lugar acima da terra, 24 horas por dia.”
Drones fazem vigilância constante e atiram em qualquer coisa que se mova na superfície. Em uma faixa de cerca de 10 a 15 quilômetros na frente de batalha, ninguém anda em lugar nenhum, sob risco de ser alvejado.
É como se fosse um jogo de “batalha naval”, em que os jogadores sabem exatamente onde estão todos os destróieres, submarinos, porta-aviões e encouraçados.
Todos torcem para o mau tempo chuva, neve, neblina ou, de preferência, tudo junto. A visibilidade para os drones cai, e alguns não conseguem voar.
Para tentar fugir dos FPVs, grande parte dos veículos militares tem o chamado EW (electronic warfare) ou REP (radio electronic protection) no teto. Trata-se de equipamentos que causam interferência nas frequências de sinais de satélite e comunicação móvel, para confundir os drones.
O equipamento, porém, custa de US$ 2.500 (R$ 14 mil) a US$ 10 mil (R$ 57 mil) e pode ser enganado pelos FPVs com “frequency hoppers”, que saltam automaticamente de uma frequência para outra. Além disso, cresce o número de drones de fibra ótica, que usam fios muito finos de até 15 km e não dependem de frequências de rádio. Maksim “Altair” Holubok, chefe do Estado-Maior da 13ª Brigada Khartia, que atua em Kharkiv, afirma que este tipo de drone é uma grande preocupação, assim como os projéteis guiados russos (Krasnopol). “É impossível detectá-los”, diz.
Outra forma de tentar escapar dos FPVs é o casaco antidrone, usado pelos soldados enquanto cavam seus buracos. O acessório impede os aparelhos de detectarem uma pessoa por meio da visão térmica. No entanto, é bastante desconfortável. Vesti-lo por mais de meia hora é quase impossível.
Para Andrii Zahorodniuk, ex-ministro de Defesa da Ucrânia, drones foram um divisor de águas no conflito. “É possível fazer com eles certas operações que normalmente seriam realizadas pela Força Aérea. Não todas, mas algumas”, afirma. “É uma negação mútua. Nós impedimos que os russos controlem nosso espaço aéreo, eles impedem que nós controlemos o deles.”

Fonte: FolhaPress