Cinquenta anos atrás, estima-se que eram realizados 300 mil abortos clandestinos por ano na França. “Abortava-se em condições assustadoras, em cima de mesas de cozinha, frequentemente com hemorragias e sequelas para toda a vida”, lembra à reportagem a diplomata Claudine Monteil, na época uma jovem feminista.
Tudo mudou em 17 de janeiro de 1975, quando foi promulgada a lei que legalizou o aborto no país. Esse direito foi reforçado no ano passado, quando a França se tornou o primeiro país do mundo a sacramentá-lo na Constituição.
Mas mesmo na nação onde o aborto conta com a maior proteção legal do mundo existe o temor de um retrocesso, caso a ultradireita chegue ao poder nos próximos anos.
Atualmente ocorrem cerca de 250 mil abortos legais por ano na França -ou “interrupções voluntárias de gravidez” (IVGs), nome oficial do procedimento. A mulher que decide abortar precisa procurar um profissional de saúde até a sétima semana de gravidez (para a IVG ser feita com medicamentos) ou, no máximo, até a 14ª (e aí ela é feita com instrumentos).
O tempo de gravidez é determinado por exame clínico e, se necessário, ultrassom. Menores de 18 anos passam por uma consulta psicossocial prévia. Há outra consulta de acompanhamento que ocorre de duas a três semanas depois do aborto.
A lei de 1975 ficou conhecida como Lei Veil em razão do nome da autora da proposta, a então ministra da Saúde, Simone Veil (1927-2017). Curiosamente, ela pertencia a um partido de direita, ainda que o projeto tenha sido aprovado sobretudo com os votos da esquerda.
Para obter a aprovação da lei ante um plenário hostil, ela adotou a estratégia de enfatizar a questão da saúde pública, mais do que o direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo.
À época, o correspondente da Folha de S.Paulo em Paris, João Batista Natali (1948-2024), relatou os desumanos ataques sofridos por Veil, sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz: “Foi acusada de ‘legalizar o infanticídio nazista'”, escreveu.
Veil depois viraria o rosto da legalização do aborto na França. Um ano depois de sua morte, seus restos foram para o Panteão, mausoléu onde os franceses sepultam seus heróis, do filósofo Voltaire à dançarina Josephine Baker. É comum encontrar em cidades francesas muros pichados com sua efígie e a frase “Merci Simone” (“Obrigado, Simone”).
Dentre os muitos eventos pelos 50 anos da lei, está em turnê pela França uma peça baseada na autobiografia de Veil, criada e protagonizada pela premiada atriz franco-brasileira Cristiana Reali, 59.
“De vez em quando eu penso o que Simone Veil pensaria das feministas de hoje, do MeToo. Ela dizia: ‘Não tenho temperamento militante.’ Não tenho resposta, mas acho que ela estaria junto”, diz a atriz. Ela é filha do jornalista Reali Jr. (1941-2011), que durante décadas foi correspondente em Paris da rádio Jovem Pan e do jornal O Estado de S. Paulo.
Reali lamenta a situação no Brasil, onde o aborto só é legal em casos de estupro, feto anencefálico ou risco à vida da mulher. “Quando você vê a história dessa menina de dez anos que foi estuprada, isso mostra que o Brasil ainda está bem atrasado na condição da mulher.” Ela se refere a um rumoroso caso de 2020, em que religiosos tentaram impedir um aborto legal.
A coragem de Veil foi indiscutível, mas ela não foi a única. Na luta das feministas, que durou décadas, destacou-se outra Simone famosa, a De Beauvoir (1908-1986), de quem a diplomata Claudine Monteil foi discípula na juventude.
Monteil conta que, ao dar a uma entusiasmada Simone de Beauvoir a notícia da legalização do aborto, a resposta da filósofa foi seca. “Não vencemos. Bastará uma crise política, econômica ou religiosa para que nossos direitos sejam questionados.”
Incidentes recentes mostram que a declaração continua atual. No dia da constitucionalização do aborto, no ano passado, uma estátua de Simone Veil foi vandalizada em La Roche-sur-Yon, cidade do oeste da França.
Próximo de chegar ao poder, a julgar pelas pesquisas, a Reunião Nacional (RN), principal partido de ultradireita francês, evita atacar publicamente o direito ao aborto. Mas tampouco o defende. Essa contradição ficou evidente nos votos do partido na sessão que inseriu o aborto na Constituição: 46 a favor, e 42 contra, ausentes ou abstenções.
O direito ao aborto avança lentamente no resto do mundo. Hoje, ele é autorizado sem restrições em 75 países, segundo um relatório de 2024 do Senado francês. Muitos desses Estados são ex-integrantes da antiga União Soviética, onde o aborto foi legalizado em 1920, proibido de novo sob Stálin, em 1936, e autorizado de novo em 1955.
Todos os anos, segundo o mesmo relatório do Senado francês, citando estimativa da OMS (Organização Mundial da Saúde), ocorrem 25 milhões de “abortos inseguros” no planeta, matando cerca de 40 mil mulheres.
A Argentina foi um dos países que mais recentemente legalizou o aborto, em 2020. Mas o presidente Javier Milei, que assumiu em 2023, manifestou a intenção de realizar um referendo sobre o tema. Ele já qualificou o procedimento de “assassinato com agravante”.
Fonte: FolhaPress