WALTER PORTO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “A memória da frase reapareceu nítida”, diz o narrador. “A criança de sete anos permanece adormecida dentro de você para sempre, assim como o adolescente de 13, o jovem de 22, o quase adulto de 35, o adulto de 51, o velho de 72. Súbito, eles acordam e mostram os dentes.”
Em “A Tensão Superficial do Tempo”, que sai agora pela Todavia, todas as épocas da vida do protagonista criado por Cristovão Tezza convivem num caldeirão.
No fluxo da narrativa, é como se toda a história acontecesse ao mesmo tempo e tudo custasse a sair do imobilismo, cada tentativa de avanço jogando tudo de volta para o passado. Um pouco como a história do nosso país.
“O Brasil não saiu do lugar, a sensação é essa”, diz o escritor de 67 anos ao repórter. “Tive um momento de otimismo depois do Plano Real, achava que havia um processo civilizatório consistente. Depois a coisa foi caindo, caindo, até o bolsonarismo. É impressionante como a gente pode andar tanto para trás.”
Ainda que não se resuma a um tratado político, “A Tensão Superficial do Tempo” é uma das primeiras obras literárias a encarar com propriedade o Brasil bolsonarista, que segundo Tezza funciona no livro como “um eco que atormenta a cabeça do Cândido”, o protagonista.
Professor de química, acostumado à racionalidade universal das reações moleculares, o personagem se vê preso a uma realidade em que “todas as manhãs o sábio povo brasileiro consulta o WhatsApp para saber a quantas anda a Lei da Gravidade, se já foi revogada ou sofreu veto”.
E vivendo sob os desmandos de um presidente que “não foi eleito pelos silogismos, senos e cossenos, cálculo integral, inteligência precisa, fineza política ou coração cristão”, mas pelos “socos do gorila no peito peludo”.
Na sala dos professores, um colega de Cândido comenta que a situação política tão desconcertante do país o levava a um estado de “paralisia argumentativa”, o que ecoa um sentimento do próprio Tezza.
“Estamos num momento político absolutamente irracional. O choque do bolsonarismo foi tão grande porque ele sequestrou as premissas sobre as quais você conseguia discutir as questões de Estado, de sociedade, e qualquer sistema de referência pelo qual você conseguia entender o que está acontecendo”, diz. “É uma coisa que não tem pé nem cabeça o tempo todo. Por isso é profundamente angustiante.”
Entre os docentes do cursinho onde Cândido trabalha, ainda há uma hoste bolsonarista, a professora Juçara. E o autor evita a armadilha de retratar a personagem como uma mera pateta.
“Eu tinha uma limitação de escritor, porque conheci poucos bolsonaristas”, conta Tezza, rindo. “Você acaba convivendo só com a sua bolha. O que eu queria fazer era uma síntese do discurso que justifica o bolsonarismo, que joga com emoções primárias.”
Ele se refere a um trecho em que se faz a defesa do armamento do cidadão contra um hipotético bandido que entra na sua casa e mata sua filha; ou “a defesa da família normal”, nas palavras de Juçara, sem “deturpações globalistas”, exigindo “a simples decência das coisas”.
“Há um ano eu não poderia dizer essas coisas aqui e em lugar nenhum; agora eu posso”, brada a professora direitista na ficção. “Eu não estou fazendo uma caricatura, não me olhe com esse jeito debochado – milhões de pessoas dizem exatamente o que estou dizendo agora.”
O momento político é propício para explorar um tema já consagrado da literatura de Tezza, a dicotomia entre a racionalidade e a emoção. Um choque estrondoso que, aqui, se dá tanto no flá-flu brasileiro quanto na vida amorosa do protagonista.
Cândido passa todo o livro às voltas com amores do passado, muitos deles ainda fortemente presentes, e com paixões de hoje, estas carregadas de memórias. É uma equação que o professor de química nunca consegue decifrar.
“Eu tinha interesse na relação entre a objetividade concreta da matéria e a incapacidade dele de resolver questões emocionais, da sua vida pessoal”, aponta o autor.
O tempo, digamos, real do livro se passa em coisa de 15 minutos, quando o protagonista se senta no banco de um parque para remoer a última desilusão. O resto é lembrança.
Uma habilidade oculta de Cândido, sua perícia como pirateador de filmes em torrent, se destina a agradar tanto as novas conquistas românticas como a própria mãe, uma octogenária viúva de militar que passa seus dias apertando play em filmes das mais diversas épocas, que o filho baixa e coloca num pen drive.
A tecnologia avançada desse mundo subterrâneo, assim, é usada para dar sentido à vida de uma anciã moralizadora –que tece pequenas críticas de uma banalidade muito real, comentando por exemplo que tal filme é só “bom para passar o tempo” ou fazendo julgamentos puramente morais sobre a vida dos personagens–, em mais uma das contradições temporais que o livro opera.
Não é a primeira vez que Tezza escreve explorando a técnica narrativa de agregar momentos separados num mesmo balaio –fez isso em seu livro anterior, “A Tirania do Amor”–, mas este soa como um comentário especialmente voltado à nossa insuperável imobilidade histórica.
A tensão superficial do título se origina de um conceito da físico-química, a fina camada que há sobre os líquidos que explica, por exemplo, como os insetos conseguem caminhar sobre a água. Ao relacionar a expressão ao tempo, Tezza elabora a ideia de algo que precisa ser rompido para que o futuro irrompa.
O escritor afirma duas vezes durante a entrevista que mantém sempre um pouco de otimismo, mas evita qualquer prognóstico político, tamanha a imprevisibilidade do governo (“faz uma semana que o Bolsonaro não dá declaração nenhuma, o que já é uma novidade absoluta, parece que estamos num outro país”).
Por mais que estejamos de volta a um impasse que parecia superado, houve um aprendizado, afirma ele. “Hoje o país sabe muito mais sobre si mesmo do que sabia 30, 40 anos atrás.” E diz confiar que vamos sair dessa crise. Uma vez que se rompa a tal paralisia.
Cultura
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