
Clubes aumentam salários de jogadores para se proteger de possíveis rescisões
A recente ida de um atleta do Corinthians para o Bahia levou ao rompimento de relações entre os dois clubes — e a uma discussão mais ampla no mercado do futebol. Kauê “Furquim”, formado no Parque São Jorge e tratado como uma promessa das categorias de base alvinegras, mudou de casa para Salvador nas últimas semanas, por R$ 14 milhões, em um movimento incomum para o mercado.
Diferentemente daquele típico vai-e-vem do futebol profissional, o mercado de jovens atletas ainda nas categorias de formação não costuma ser tão agitado. Só que isso pode estar mudando: receosos sobre o risco de perder promessas, clubes têm aumentado os cheques pagos para suas joias e o mercado já começa a sentir efeitos inflacionários.
Antes, uma explicação: existem duas formas de vínculo entre atletas de base e clubes de futebol no Brasil. O primeiro, e único possível para crianças, adolescente e adultos até 20 anos, é o contrato de formação, uma espécie de ajuda de custo para cobrir gastos do atleta na formação esportiva. Para esse tipo de vínculo, os pagamentos não costumam ultrapassar um salário mínimo.
Quer levar uma joia do clube em que ela firmou seu contrato de formação? Tudo bem. É só pagar 200 vezes o investido em toda a formação desse atleta — entra tudo na conta: gastos com técnicos, manutenção dos campos, alimentação, a própria ajuda de custo. Para se ter ideia, um clube formador de ponta chega a gastar até R$ 5 mil em um jovem da categoria de base, segundo uma fonte ouvida pelo InfoMoney. Agora multiplique isso por 200 vezes em alguns anos.
Não é raro que familiares de grandes promessas recebam empregos nos clubes e tenham custos de moradia cobertos nessa fase.
A partir dos 16 anos, no entanto, o atleta já pode fechar um contrato de trabalho. Funciona como para qualquer jogador profissional, só que o garoto ainda não está jogando nenhum torneio do primeiro escalão. Para proteger os clubes, a Lei Geral do Esporte determina que a clausula de rescisão de um jogador seja equivalente a até 2 mil vezes seu salário.
Como se proteger de possíveis empreitadas de outros clubes, então? Jogando o salário dos garotos lá em cima. Um gestor de categorias de base disse ao InfoMoney que garotos de categorias sub-20 pelo Brasil já recebem salários na casa dos R$ 20 mil. Além disso, explica o advogado e mestre em direito desportivo, João Henrique Chiminazzo, contratos profissionais dão maior garantia jurídica ao clube na comparação com os acordos de formação.
Pode parecer pouco quando comparado às cifras milionárias do futebol profissional, mas considerando o número de jogadores de base que realmente vingam na categoria adulta, o valor é alto.
João Paulo Sampaio, coordenador da base do Palmeiras — tratado como uma das maiores referências em formação do País — disse recentemente em entrevista a um podcast estar observando uma escalada de preços similar a do mercado profissional. “Começa a inflacionar a base, [dar um salário de] R$ 10 mil para ter uma proteção maior”, disse.
Um ingrediente fundamental para o caldo inflacionário que parece estar se formando é o dinheiro, claro. Não simplesmente a grana, mas o excesso dela circulando no mercado do futebol. Bets, melhores contratos de transmissão e o dinheiro novo das SAFs levaram as receitas — e gastos — dos clubes brasileiros para cima.
Veja o caso do São Paulo: no início de setembro, o tricolor anunciou a estruturação de um Fundo de Investimentos em Participações (FIP) para suas categorias de base. Em entrevista ao GE, o presidente Julio Casares afirmou que com o fundo, o clube poderia, além de formar atletas, comprar fatias de jogadores ou levá-los para a base do São Paulo.
O discurso de “compra” de atletas de base não costumava ser comum: via de regra, jogadores chegam jovens aos seus clubes e passavam por um longo período de formação lá. “Agora estão vendo que no final é mais simples comprar um atleta bom de 16 e 17 anos do que um menino de 11 e desenvolvê-lo”, disse um fonte do setor.
Para onde vão as categorias de base
Além dos contratos profissionais com jovens a partir dos 16 anos (mesmo que ainda estejam jogando em categorias de base), clubes querem acertar na descoberta de estrelas cada vez mais jovens. Além dos contratos de formação, não é raro que gestores ofereçam empregos dentro do próprio clube para as famílias dos jovens atletas e residências.
Embora as promessas estejam ganhando mais, gestores avaliam com receio os potenciais efeitos do ciclo de aumentos de preço para a formação. “Tem um aspecto mais maléfico que é o menino ganhar algum dinheiro muito cedo e achar que é grande, se acomodar. Mas na carreira de um jogador, esse dinheiro nem é tanto quando você olha para o futuro”, disse um deles.
Acontece que investimentos nas categorias de base se mostraram negócios bem rentáveis nos últimos anos. Todos querem ter o próximo fenômeno vendido ao futebol estrangeiro — e ninguém quer correr o risco de perdê-lo para um rival.
No extremo caso do Palmeiras, uma das referências do País em formação, uma geração de ouro levou o clube a cifras próximas a R$ 1 bilhão em vendas entre recebimentos fixos e bônus. Estevão, Endrick e Luis Guilherme, foram negociados por cerca de R$ 800 milhões.
Segundo o Relatório Convocados, o número de clubes dedicados exclusivamente a à formação de base saltaram de 384 em 2023 para 455 em 2024. “Isso tem alimentado os clubes, que pagam pelos direitos e ainda deixam boas fatias para o futuro”, diz o responsável pelo estudo, César Grafietti.
Ao mesmo tempo, projetos de SAF como o do Bahia, de um tradicional time profissional, também se estruturam olhando estrategicamente para a base. Por isso a chegada do jovem Kauê “Furquim” não é pontual: comprado pelo Grupo City, o Bahia quer se tornar uma referência de formação no Nordeste, região de onde muitos jovens partiam para fazer sua formação em Sul e Sudeste.
Só que o planejamento é até maior. A avaliação no mercado é de que projetos de propriedade multiclube, como é o caso do Grupo City, se beneficiam por ter um clube formador no Brasil e formar seus próprios talentos em casa, diminuindo a dependência da montanha de dinheiro paga pelos clubes europeus por jogadores brasileiros.
Fonte: InfoMoney