Data Mercantil

Como Kirchner, Trump dá passo perigoso ao tentar influenciar dados econômicos

Presidente americano emula casos famosos na história, como o da Argentina de Néstor Kirchner, que subestimou sistematicamente a inflação a tal ponto que o mundo deixou de confiar nos dados oficiais

Quando o presidente Donald Trump não gostou dos fracos números de emprego divulgados na sexta-feira (1º), ele demitiu a pessoa responsável por produzi-los.

Foi uma medida com poucos precedentes na história centenária das estatísticas econômicas nos Estados Unidos — e por um bom motivo: quando líderes políticos interferem nos dados governamentais, raramente o desfecho é positivo.

Há o caso da Grécia, onde o governo manipulou números de déficit por anos, contribuindo para uma crise de dívida debilitante que exigiu várias rodadas de resgates. Posteriormente, o país chegou a processar criminalmente o chefe da agência de estatísticas por insistir em divulgar os números reais, prejudicando ainda mais sua credibilidade internacional.

Há o caso da China, onde, no início deste século, autoridades locais manipularam dados para atingir metas de crescimento impostas por Pequim, obrigando analistas e formuladores de políticas a recorrerem a indicadores alternativos para avaliar a economia.

Talvez o mais famoso seja o caso da Argentina, que, nas décadas de 2000 e 2010, subestimou sistematicamente a inflação a tal ponto que a comunidade internacional deixou de confiar nos dados oficiais. Essa perda de credibilidade elevou os custos de empréstimos do país e agravou a crise da dívida, culminando em um calote sobre suas obrigações internacionais.

Ainda é cedo para saber se os Estados Unidos seguirão um caminho semelhante. Mas economistas e outros especialistas afirmam que a decisão de Trump, na sexta-feira, de demitir Erika McEntarfer, chefe do Departamento de Estatísticas do Trabalho (BLS, na sigla em inglês), confirmada pelo Senado, é um passo preocupante nessa direção.

A ex-secretária do Tesouro e ex-presidente do Federal Reserve, Janet Yellen, disse que a demissão não é algo esperado da economia mais avançada do mundo.

“Esse tipo de coisa você só esperaria ver em uma república de bananas”, afirmou Yellen.

Estatísticas essenciais

O BLS faz parte oficialmente do Departamento do Trabalho, cujo secretário integra o gabinete do presidente. Mas a agência opera de forma independente, produzindo dados detalhados e apartidários sobre emprego, preços, salários e outros temas.

Economistas afirmam que estatísticas confiáveis e independentes são cruciais para decisões sólidas tanto no setor público quanto no privado. Autoridades do Federal Reserve dependem de dados oficiais sobre inflação e desemprego para decidir a taxa de juros, que afeta quanto os americanos pagam por um financiamento imobiliário ou um empréstimo para carro.

“Dados de qualidade ajudam não apenas o Fed, ajudam o governo e também o setor privado”, disse Jerome Powell, presidente do Fed, em entrevista recente. “Os Estados Unidos têm sido líderes nisso por 100 anos, e, na minha visão, precisamos continuar assim.”

Especialistas ressaltam que os dados do BLS e de outras agências não devem se deteriorar de forma dramática de um dia para o outro. O substituto interino de McEntarfer, William J. Wiatrowski, é um funcionário veterano amplamente respeitado. Os servidores de carreira responsáveis pela coleta e análise de dados permanecem no cargo, utilizando os mesmos métodos e procedimentos de antes.

No entanto, especialistas que até poucos dias defendiam a integridade dessas agências agora se veem fazendo perguntas desconfortáveis sobre o futuro dos dados econômicos nos EUA.

“Se os números da pobreza vierem bons, o diretor do Censo vai receber um aumento? E se a renda das famílias não vier boa? E o PIB? E o CPI?”, questionou Amy O’Hara, ex-funcionária do Census Bureau e hoje professora na Universidade de Georgetown.

Integridade em risco

Trump afirmou ter demitido McEntarfer porque os números divulgados por sua agência estariam “manipulados” para prejudicá-lo politicamente.

Ex-comissários do BLS, de administrações democratas e republicanas, contestam essa alegação. O comissário, que é o único indicado político da agência, não controla os números publicados — e nem sequer os vê antes de serem finalizados pela equipe técnica de carreira, cuja atuação atravessa diversos governos.

Erica Groshen, que chefiou o BLS durante o governo Barack Obama, lembra que enfrentou resistência interna quando tentou tornar mais “otimistas” as redações dos relatórios mensais de emprego. Os técnicos insistiam que a função da agência não era dizer se o copo estava meio cheio ou meio vazio, mas apenas relatar: “É um recipiente de oito onças com quatro onças de líquido”. Groshen cedeu.

Ainda assim, interferências políticas são possíveis. As estatísticas governamentais dependem de centenas de decisões metodológicas, muitas vezes baseadas em julgamentos técnicos sem respostas únicas. Um chefe suficientemente experiente poderia, ao longo do tempo, ajustar métodos para favorecer um resultado político, sem causar um escândalo que levasse à renúncia coletiva dos técnicos.

“Consigo imaginar um novo comissário tentando alterar métodos e procedimentos para mexer nos números para um lado ou para o outro”, disse Katharine G. Abraham, que liderou o BLS nos governos Clinton e George W. Bush. “Ele teria que saber exatamente onde colocar o dedo na balança.”

Alternativas privadas

Existem também métodos mais diretos. Em 2007, na Argentina, o governo de Néstor Kirchner afastou o matemático responsável pelo índice de preços ao consumidor e divulgou uma inflação muito abaixo da calculada originalmente.

O público não se deixou enganar — e tampouco os investidores internacionais, que passaram a recorrer a índices privados calculados por pesquisadores independentes.

Mas essas alternativas têm limitações, afirma Alberto Cavallo, economista de Harvard que desenvolveu um dos índices privados mais usados na Argentina.

“Fontes privadas podem complementar as estatísticas oficiais, mas não substituí-las”, escreveu Cavallo em e-mail. “Somente agências governamentais têm os recursos e a escala para realizar pesquisas nacionais — algo que nenhuma iniciativa privada consegue replicar totalmente.”

Nancy Potok, ex-funcionária do Census e ex-chefe de estatísticas dos EUA no primeiro governo Trump, disse que antes havia forte apoio bipartidário ao sistema estatístico, tanto no Congresso quanto no setor empresarial. Mas a polarização política parece ter corroído esse respaldo, justamente no momento em que as pressões políticas e restrições orçamentárias aumentam a necessidade de preservá-lo.

“Antes havia pessoas que realmente entendiam o valor dos dados econômicos, mas hoje essa não é mais a conversa — e os defensores que existiam não estão mais lá”, afirmou. “Não há ninguém liderando a defesa para fazer esses investimentos.”

Fonte: The New York Times

Sair da versão mobile