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“Tarifaço”: oportunidades são pontuais e não compensam perdas e danos, diz ex-OMC

Em entrevista exclusiva ao InfoMoney, Roberto Azevêdo diz que os impactos virão de todos os lados – e a maior parte deles será negativa

nova política de tarifas estabelecida pelo governo de Donald Trump mal começou e já é vista com potencial de alterar para sempre as bases do comércio internacional. Seus impactos em potencial têm sido alvo de muita análise, alguma especulação – e nenhuma certeza.

“Dependendo da forma como os outros países reajam com retaliações, e os próprios americanos dobrando a aposta, podemos ter impactos vindo de todo lado”, avalia o embaixador Roberto Azevêdo, ex-diretor geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e presidente global de operações da Ambipar.

“A inflação vai subir, a economia mundial pode desacelerar, você pode ter um reordenamento dos fluxos de comércio globais, as cadeias de suprimento podem mudar e, nesse contexto, vai ter impacto de todo jeito. E a maior parte dele será negativa”, disse ele ao InfoMoney Entrevista, novo programa do InfoMoney que traz ao debate semanalmente figuras renomadas da economia, dos negócios, da política e até da cena pop.

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Para Azevêdo, é possível, sim, que oportunidades pontuais para o Brasil apareçam em meio à tentativa de Trump de colocar a ordem global em xeque – é o que se costuma dizer do agronegócio, que poderia abocanhar uma fatia de mercado maior caso China e outros países decidam retaliar deixando de comprar produtos dos EUA. “Mas num quadro tão dramático como esse maior que pode acontecer, as oportunidades não vão compensar as perdas e os danos que virão a se manifestar de outras formas”.

Veja a entrevista completa no player acima ou leia os principais trechos abaixo:

InfoMoney – Como o senhor lê as diversas medidas de viés nacionalistas implementadas pelo presidente Donald Trump nos Estados Unidos até aqui – a saída de Acordo de Paris, o fim do financiamento a algumas agências com atuação internacional, o cerco aos imigrantes e, claro, o “tarifaço”?

Roberto Azevêdo – Não dá para pensar na narrativa do governo Trump sem ter a percepção de que esse não é um movimento exclusivo dos Estados Unidos. Isso está acontecendo no mundo inteiro. O próprio Brasil experimenta correntes políticas que são muito próximas disso, a Europa também.

E tem a ver com mudanças estruturais nas economias e sociedades dos países, sobretudo os desenvolvidos. Com a revolução digital, com a classe média que ficou achatada, deslocada do centro da economia, com salários mais baixos.

Nos Estados Unidos, por exemplo, os empregos de manufatura, propriamente ditos, foram deslocados para a Ásia e países emergentes. Os EUA estão se transformando num país de serviços, o que é natural para uma economia avançada como a deles. Isso tudo tem impacto social, econômico, estrutural, laboral.

“Associado a esse movimento interno, há também a percepção de que a ordem internacional não favorece mais os Estados Unidos, que o mundo está tirando vantagem deles. Depois da Segunda Guerra Mundial, o país se arrogou o papel de ser a polícia do mundo, o motor da economia global. E a visão do presidente Trump é de que isto não deve trazer para os EUA um ônus desproporcional”— Roberto Azevêdo

Há uma desconfiança do sistema multilateral de maneira geral, que já não serviria aos interesses americanos.

InfoMoney – E, agora, isso se acentuou especificamente na frente comercial.

Azevêdo – Trump já vinha tratando disso desde o primeiro mandato. A movimentação no sentido de usar as tarifas para obter concessões e objetivos se acentuou no segundo. Em várias situações as tarifas estão sendo usadas não para atingir metas econômicas como, por exemplo, de reindustrialização – mas para conseguir metas de controle da imigração, tráfico de drogas, até a expansão geopolítica dos EUA. É uma versão ampliada e robusta do que já vinha fazendo no primeiro mandato.

InfoMoney – Quais os efeitos do “tarifaço” para o Brasil? Os EUA são comercialmente superavitários em relação a nós – quanto isso nos protege e quanto molda nossa possibilidade de resposta?

Azevêdo – Deveria ajudar, mas, na prática, isso não deve ter um peso muito grande. Sempre que nós ouvimos o presidente Trump falar sobre o Brasil, especificamente nesse contexto, em nenhum momento é “veja, com esse país temos um saldo comercial”.

Pelo contrário, o que ele fala é que somos um país que trata mal o exportador americano, que tem tarifas muito mais altas do que as aplicadas para os produtos brasileiros, que não há reciprocidade tarifária e que é preciso corrigir esse tipo de coisa.

Provavelmente, o argumento será usado pelo negociador brasileiro nas conversas com os norte-americanos. Ele vai dizer: “Vocês têm um superávit comercial com o Brasil e não devem tratar a gente como tratam outros claramente superavitários com vocês”. Eu usaria esse argumento ad nauseum, mas não sei se o outro lado estará disposto a ouvir.

InfoMoney – Em um estudo sobre barreiras comerciais divulgado pelo governo americano, o Brasil recebeu diversas críticas – das barreiras ao etanol e ao setor audiovisual, chegando às compras governamentais restritivas aos produtos importados. Mas o Brasil argumenta que a tarifa efetiva média aplicada sobre as mercadoria americanas aqui é de menos de 3%. Os apontamentos feitos pelos EUA em relação ao Brasil fazem sentido?

Azevêdo – Não vi ali nenhuma surpresa, francamente. Não tinha nada no documento que já não tivesse sido objeto de reclamações, fosse do governo americano, fosse do setor privado, das câmaras de comércio. Então, fazer sentido, faz. Mas não acho que o que tem ali esteja necessariamente ligado à reclamação de tarifas.

Porque o documento fala de tarifas na primeira página, mas em seguida já pula para barreiras técnicas, não tarifárias, compras governamentais, propriedade intelectual e por aí vai. Tem um monte de coisa que não tem nada a ver com tarifa. Se o presidente Trump vai levar essas outras coisas em consideração ou não, não sei.

InfoMoney – Na sua visão, os efeitos do “tarifaço” para o Brasil vão se dar pela via comercial ou pela via financeira, já que existe uma expectativa de inflação e juros mais altos nos EUA?

Azevêdo – Dependendo da forma como os outros países reajam com retaliações e, eventualmente, os próprios americanos e o presidente Trump adotando contra-retaliações, dobrando a aposta, podemos ter uma situação em que os impactos virão de todo lado. Do lado financeiro, do lado comercial propriamente dito – esse é meio óbvio.

A inflação vai subir, a economia mundial pode desacelerar, você pode ter um reordenamento dos fluxos de comércio globais, as cadeias de suprimento podem mudar e, nesse contexto, vai ter impacto de todo jeito, de todo lado. E eu diria que a maior parte dos impactos será negativa.

Haverá oportunidades pontuais aí dentro. Por exemplo, fala-se muito sobre a oportunidade para o setor agropecuário brasileiro, porque a China e outros países podem, por exemplo, deixar de comprar produtos americanos como retaliação. O Brasil é um grande produtor de commodities, então poderia ampliar a sua fatia de mercado nesse setor especificamente.

“Não sei, mas eu acho que as oportunidades, num quadro tão dramático como esse maior que pode acontecer, não vão compensar as perdas e os danos que virão a se manifestar de outras formas”— Roberto Azevêdo

InfoMoney – A propósito disso, na última semana o jornal The Wall Street Journal publicou uma reportagem destacando o Brasil como um potencial ganhador da guerra de tarifas. Seria uma visão um pouco otimista demais?

Azevêdo – Acho que o Brasil e todos os outros países vão tentar encontrar e abocanhar o que tiver de positivo nesse cenário, as oportunidades que se apresentarem. Até porque nós estaremos, provavelmente, com uma tremenda escassez de boas notícias.

Então, numa situação desse tipo, o que aparecer e tiver um sinal positivo na frente do número será aproveitado e maximizado. Acho que é natural que o país queira fazer isso, é natural que os setores econômicos brasileiros estejam atentos e ativamente busquem essas oportunidades para concretizá-las da melhor maneira possível. Mas, o ideal era não ter essa turbulência toda que virá pela frente porque o saldo no global será negativo. Não só para o Brasil, para o mundo inteiro.

InfoMoney – As ameaças que vinham sendo feitas por Trump levaram à aceleração da tramitação do projeto de lei 2088/2023, o chamado PL da Reciprocidade Econômica. Ele nasceu com um viés voltado ao agronegócio, mas passou a abranger a reciprocidade em negociações comerciais em todos os setores. Na sua visão, é dessa forma que o Brasil deveria reagir ao “tarifaço”?

Azevêdo – O PL, propriamente dito, não prejulga a reação que o governo brasileiro deve ou não deve ter.

Sua primeiríssima versão veio em reação a medidas que os europeus estavam tomando na área climática, que exigiriam custos ao Brasil na área de desflorestamento, rastreabilidade, por aí vai. O presidente Trump apareceu com a turbulência que está introduzindo, e aí o pessoal pensou: já que temos isso em trâmite, por que não adaptamos para uma situação mais ampla?

Você pode até querer fazer certas coisas, mas se você não tem um instrumento jurídico e legal que permita, ficará com as mãos atadas – não pela falta do desejo ou do empenho político, mas pela falta do instrumento jurídico que te permita atuar.

Quando o presidente Trump adota essas medidas, invoca dispositivos jurídicos de segurança nacional, de períodos de exceção, até de guerra. Você pode até questionar a legalidade, e muito disso está sendo questionado nas cortes americanas. Mas essa instrumentalização jurídica precisa existir.

E o PL da Reciprocidade faz isso: dá ao governo brasileiro a possibilidade de fazer retaliação se o governo julgar que este é o caminho que deve ser seguido. Por isso, não se prejulga nada.

Uma coisa engraçada do PL é prever a possibilidade de retaliação cruzada. No jargão comercial, isso quer dizer que, embora os Estados Unidos estejam adotando medidas que se relacionam basicamente com a importação de produtos, minha retaliação não precisa ser em produtos apenas. Posso retaliar em serviços, direitos de propriedade intelectual, quebra de patentes e por aí vai. Ele amplia o escopo das possibilidades de resposta para o governo brasileiro.

Se isso vai ser bom ou não, veremos. Mas o Brasil terá, pelo menos, os instrumentos que permitam atuar nessa direção.

InfoMoney – De que outras formas o senhor acredita que o Brasil pode responder, reagir ou se adaptar às novas medidas?

Azevêdo – Em situações desse tipo, a primeira coisa que tendo a fazer – e que eu imagino que o governo deveria fazer – é avaliar o impacto sobre seus interesses. A partir dessa avaliação, a segunda coisa a fazer é olhar ao redor. Não somos os únicos, tem muita gente sendo afetada aqui.

Como os outros estão se comportando? Como o mundo está reagindo a essa nova realidade? E à luz desse diagnóstico do impacto sobre mim, sobre o mundo e como o sistema está respondendo, vou pensar nos meus objetivos. O que quero a partir daqui?

“Eu imagino que o Brasil queira minimizar esse impacto. Ele não vai querer aumentar ou polemizar, porque isso é possível. Você pode ter países que querem polemizar por uma questão geopolítica, de política interna, de política externa, enfim”— Roberto Azevêdo

Nesse caso específico, o Brasil vai ter que decidir seu objetivo e então determinar o curso de ação. Vou sozinho? Vou fazer alianças? Com quem? A aliança é boa para mim ou vai me expor mais ainda? Vai aumentar minha alavancagem negociadora? Ou criar um atrito ainda mais pesado? Tudo isso tem que ser sobrepesado de maneira cuidadosa. Tenho certeza de que os negociadores brasileiros farão isso.

Fonte: InfoMoney

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