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‘Álbum de Família’, peça mais obscena de Nelson Rodrigues, abre teatro em SP

Nos arredores do terminal Princesa Isabel, nos Campos Elíseos, região central da capital paulista, usuários de crack ocupam as calçadas, em meio a amontoados de lixo. Na hora do almoço, o fluxo erra pela região e faz fila, atrás das quentinhas ali distribuídas.
“Eles passam aqui, olham para você e logo te cumprimentam, como quem quer dizer ‘não estou aqui para te roubar”, diz a atriz Mariana Barioni. Mesmo diante de tal depauperação, ela se uniu ao ator Alexandre Galindo para abrir, na rua Conselheiro Nébias, o Teatro Estúdio.
A inauguração do novo espaço cultural acontece, nesta sexta-feira (5), com a montagem da peça “Álbum de Família”, a tragédia mais obscena de Nelson Rodrigues, que foi censurada pelo governo Dutra, permanecendo assim por 19 anos. A terceira peça do dramaturgo, escrita após “A Mulher Sem Pecado e “Vestido de Noiva”, só teve a sua primeira montagem em 1965, no Rio de Janeiro, com o ator José Wilker no elenco.
O imóvel que a receberá foi reformado com os recursos dos próprios artistas e era antes um galpão abandonado, como muitos dos prédios da rua. Não é possível dizer que a região tenha poucos espaços culturais. A poucos metros dali fica o Teatro Porto e o Paiol Cultural, por exemplo. Para os fundadores, porém, não há outra opção para recuperar o bairro senão ocupar os edifícios e fazer dos teatros pontos de burburinho.
É uma aposta e tanto. Além de precisar vencer, nas palavras de Galindo, o estigma do centro e sua sensação de insegurança, a abertura do Teatro Estúdio se insere num contexto de fechamento de várias salas pela cidade.
Da pandemia para cá, desapareceram os teatros Viga, D, Alfa, que deram lugar a empreendimentos de incorporadoras, e o Aliança Francesa. O ator afirma que a causa não foi só a pandemia, mas também a especulação imobiliária.
A fachada do Teatro Estúdio, com a foto do elenco da peça, já destoa da vizinhança. Ao entrar no prédio, há um bistrô, onde serão servidos drinques, vinhos e comidinhas. Adiante, fica a sala de 242 m², com capacidade de até 220 lugares. O espaço pode abrigar encenações em formato de arena, corredor e até no palco italiano. Nos fundos, há um grande camarim e salas de reunião. No segundo andar, fica um estúdio para a gravação de podcasts, além de uma sala de ensaio, para elencos numerosos.
A ideia é ter um espaço próprio para diversas linguagens artísticas, incluindo podcasts ou mesmo exposições. A programação teatral, ela mesma, deve espelhar as possibilidades da sala de espetáculos, atraindo peças de diretores estreantes ou produções maiores, que desejam seguir em cartaz, em novas temporadas. A reforma se iniciou em setembro de 2022 e, no ano passado, o local já abrigava ensaios de musicais, como “Priscilla: A Rainha do Deserto”.
Galindo diz que ter um teatro próprio facilita a sua vida como produtor e ator, embora as dificuldades de manter o projeto continue. “Muitas vezes, nos teatros de rua, os bistrôs dão mais lucro que a bilheteria”, afirma. E, se para Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra, a peça “Álbum de Família” foi o único consenso entre os proprietários para a inauguração.
Escrita em 1945, a obra é centrada em Jonas, papel de Galindo, o patriarca de uma família religiosa, que vive no interior de Minas Gerais. A hipocrisia dos personagens, pouco a pouco se escancara, com a revelação de seus desejos. Casado com a prima Senhorinha, agora vivida por Barioni, Jonas tem o hábito de desvirginar meninas, pensando na filha Glória, de 15 anos, interpretada por Fernanda Gidali. A filha, porém, ensaia um amor homoerótico com Teresa, encarnada pela atriz Lakís Farias, uma colega sua.
Os outros três filhos do casal também são atormentados pelo incesto. Nonô, o filho mais velho, papel de Agmar Berigo, enlouqueceu e corre nu pela casa. Edmundo, o do meio, encarnado por Iuri Saraiva, volta para casa, porque só tem desejo por sua mãe. Guilherme, o mais novo, vai para o seminário e lá corta o pênis, por não suportar a atração que sente pela irmã.
Agora, o diretor Jorge Farjalla encena a peça no formato corredor, de modo que as plateias, em cada uma das laterais, consigam se enxergar, propiciando um jogo de espelhos para estimular a reflexão sobre a sociedade brasileira. O corredor é todo coberto pela areia vermelha, típica de Minas Gerais, e as falas são pontuadas por composições de Cartola.
Farjalla opta por manter todos os atores em cena o tempo inteiro, incluindo também personagens secundários do texto, como Totinha, uma mulher grávida, interpretada pela atriz Laura Paulauskas. Os procedimentos conferem à montagem uma constante tensão, o que está presente no zumbido, entrecortando as falas dos personagens. Afinal, a plateia ouve durante a peça o choro de Nonô e os gritos da mulher grávida, tentando dar a luz.
“O tempo que eu dou para a peça não deixa a plateia respirar, não há espaço para julgamento”, afirma o diretor. São várias as cenas explícitas em “Álbum de Família”. Em um dado momento, Jonas puxa uma mulher a força e a obriga a fazer sexo oral. Além dos episódios de nudez, Gloria, ainda criança, beija a sua colega na boca.
O tom realista é antecipado no texto clássico, mas o diretor preferiu cortar algumas falas, que, segundo ele, saíram da marca politicamente incorreta do autor e resvalaram em preconceitos. “Foi um gesto correto, amoroso e elegante.”
Em se tratando de “Álbum de Família”, a visão do diretor se distancia do pensamento do crítico Sábato Magaldi, para quem os personagens rodriguianos, expondo os seus desejos, percorrem uma jornada de purificação. “Só a morte pode ser a purificação, a morte é uma facilidade”, diz.
ÁLBUM DE FAMÍLIA

Fonte: FolhaPress

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