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‘Diário de Viagem’ é íntegro, mas dá tédio ao retratar caso de anorexia

É difícil para o espectador se situar neste “Diário de Viagem”. Num primeiro momento, ele nos permite acreditar que estamos diante de um filme de adolescência, isto é, de travessia da infância à adolescência, com todos os seus percalços. No caso da jovem Liz, tudo começa com uma viagem internacional em que se dispõe a pôr em palavras seus sentimentos e sua experiência.
Desde o início, porém, sabemos que Liz se expressa melhor nos desenhos que faz. Logo saberemos que ela sofre de uma timidez excessiva, mas nada excepcional.
Há certo otimismo nesse diagnóstico. A personagem criada por Paula Kim logo transita de tímida a quase esquisita, ou deslocada, ou depressiva, ou tudo isso junto. O reencontro com o jovem Lucas, a quem conheceu na viagem, parece que vai mudar a situação. Não é, infelizmente, o que acontece.
Liz evolui rapidamente para a esquisitice. Mal fala, não come, nada. Talvez seja possível ver a obra como um filme didático, que ensinará adolescentes a contornar as dificuldades da idade, mesmo quando elas se apresentam fortes e sem nenhuma cerimônia.
No entanto, algo de muito brasileiro se revela no filme. Ela é uma adolescente de classe média, doentiamente voltada a si mesma. Mas será que os adolescentes de classe média “normais” seriam muito diferentes?
Voltemos ao filme e o comparemos a outro filme recente sobre adolescência, “Armaggedon Time”. Neste filme de James Gray, um mundo se descortina -a época (começa a era Reagan), o judaísmo, o racismo, as incertezas da idade, a necessidade de compreender um mundo que acontece fora do menino.
Em “Diário”, ao contrário, os pais de Liz não fazem nada, exceto se preocupar com a filha (única). Não sabemos quais são suas profissões, se atravessam alguma crise, qual a sua religião (caso tenham alguma), quem são seus amigos. Nada, personagens nulos, alienados. Existem para o filme e só.
Depois de intenso sofrimento psíquico e de dias e dias sem aceitar alimentos, finalmente os pais se tocam de que ela não é malcriada, nem insubmissa. Tem uma doença. O doutor Rafael, chamado a examinar a moça, logo dá o seu diagnóstico, anorexia, e a encaminha para uma psiquiatra.
Como esta também não resolve o problema, nem parece haver solução à vista, lamentamos pelo destino de Liz, que se afunda cada vez mais em seu próprio mal, enquanto seus pais se afundam com ela. Mas, por mais que lamentemos sua sorte, o filme evolui depressa para o francamente tedioso -comida na mesa, ausência de fome, gozações de colegas, choro, sensação de que tudo está errado com ela. Tudo começando e terminando nela mesma.
E assim vamos, com o sentimento de que o filme caminha para um suicídio, ou uma cura mística (o que não seria uma má saída). Seja qual fosse o caminho, seria o de um filme de caso médico, em torno de uma personagem absolutamente intransitiva.
Mas Paula Kim nos surpreende ao final. Talvez fosse apenas o desejo de nos oferecer um “happy end”, depois de tanto sofrimento.
Não importa, o certo é que na melhor tradição de Humberto Mauro, nosso cineasta clássico maior, o filme evoca a definição célebre (“cinema é cachoeira”) e nos põe diante de um maravilhoso fluxo de água, que corre como a sugerir que, como a água que desce pela pedra, a imaginação pode ser infinita.
É um instante apenas em que um fluxo inesperado de beleza promete resgatar de tanta “bad trip”. Esse raro momento precede um congelamento de imagem, e este nos lança num quadro vazio que faz pensar, afinal, que Paula Kim parece com a sua personagem.
É uma cineasta íntegra -não usa música como forma de encobrir eventuais fraquezas, por exemplo-, mas que ainda busca seu caminho. Seu diário está em andamento.

DIÁRIO DE VIAGEM
Quando: Estreia na quinta (17) nos cinemas
Classificação: 12 anos
Elenco: Manoela Aliperti, Eucir de Souza, Virginia Cavendish
Produção: Brasil
Direção: Paula Kim

Fonte: FolhaPress

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